Nas artérias do coração, fogo e paixão significam a metáfora de um amor avassalador, sentimento intenso e profundo que consome e aprisiona. Nas páginas musicais, responde por uma febre que dominou as paradas de sucesso dos anos 80 e 90 e que até hoje faz sucesso nos bailinhos dos mais antigos. Imortalizado pelo falecido cantor brega Wando, o refrão “Meu iaiá, meu ioiô” tem tudo a ver com as quatro linhas da política no início do governo de Jair Messias. Sinceramente, nunca pesquisei a respeito da verdadeira intenção do autor ao escrever os versos da canção. Talvez algo com minha dona, minha rainha ou eu sou seu e você é minha. Obviamente, as mulheres masculinizam os pronomes quando resolvem encarnar o intérprete, que recebia no palco calcinhas como brindes. Cada um com seu fetiche. Seja lá o que for, o verso é uma licença poética e poesia tem de ser respeitada.
No entanto, não há nada de verso na frase se a transportarmos para nossos dias. Fatalmente nos lembraremos da paixão inicial se transformando em fogo. Foi justamente o período em que os eleitores, seguidores e colaboradores fanáticos viraram ioiô, perderam-se pelo caminho e o que era um ex-deputado de farol e teto baixos acabou sendo elevado à condição de mito. Como os mitos são de barro, ele também está bem próximo da extinção. Até gosto da melodia em questão, mas não quero ser o iaiá, tampouco o ioiô de ninguém. Prefiro ser a luz, o raio e o luar. Fora do dicionário convencional e das elucubrações fantasiosas, fogo e paixão é o mesmo que idolatrar, ser abandonado, repensar valores, se arrepender e criticar quem um dia amou sem limites. Repito que não há como evitar comparações com a trajetória do presidente da República, que, com base em sete insossos e pueris mandatos de deputado federal, elegeu-se mandatário de uma nação que, por sua inércia administrativa, definha a olhos nus.
Amado por alguns que jamais viu, mitificado por promessas populistas que nunca cumpriu e endeusado por uma turba que nada sabia ou sabe dele, Bolsonaro entendeu que manipular seus apoiadores, avaliando-os como ioiôs ou marionetes seria tão fácil como receitar cloroquina e hidroxicloroquina para pessoas que viam a Covid-19 como um verme qualquer, ou seja, com letalidade igual ou menor a uma “gripezinha” chinesa. Cerca de 612 mil mortes depois e apenas dois anos e 10 meses após o início do idílio entre o presidente e um amontoado de celebridades políticas, militares, das policiais, da magistratura e da música, o que se vê é um desfile de arrependidos loucos para abandonar o Titanic que singra sem rumo pela republiqueta de bananas.
A lista é imensa, mas fiquemos com Sérgio Moro, Luiz Henrique Mandetta, Lobão, Fagner, o cineasta José Padilha, o ator Thiago Lacerda, os apresentadores José Luiz Datena e Danilo Gentili, a jornalista Rachel Sheherazade, os deputados Alexandre Frota, Kim Kataguiri, Joyce Hasselmann e Janaína Paschoal, além de uma infinidade de respeitados generais, entre eles Santos Cruz, Rêgo Barros e Paulo Chagas. Normalmente comedidos, alguns desses generais soltam o verbo de vez em quando, classificando o ex-chefe como fanfarrão, arrogante e populista. Em um de seus mais recentes artigos, Rêgo Barros, ex-porta-voz da Presidência, condenou com veemência aqueles que usam cidadãos fardados como trampolim “para se adornar de mais poder”. “A República está farta”, concluiu Barros.
Ex-capacho civil do governo militarizado do capitão, o diplomata e ideólogo Ernesto Araújo, ex-ministro das Relações Exteriores, foi o último a se insurgir contra o eterno líder. Durante evento conservador em Santa Catarina, Araújo criticou, ao vivo, a aproximação de Bolsonaro com o Centrão. “Surgiu aquela coisa: ‘Precisamos fazer do Centrão a base do governo’. O que a gente vê é que o governo virou a base do Centrão”. Em síntese, as antigas juras mais fortes estão se consumindo no fogo da paixão como a mais singela palha. Enquanto isso, a campanha presidencial avança em direção oposta aos sonhos dourados do Messias, cuja principal especialidade é destruir políticas públicas que funcionam. A derradeira “obra” objetivava acabar com o Enem, criado em 1998 para atender milhões de estudantes que buscam a universidade gratuita.
Em nome de uma ideologia tacanha e com métodos ditatoriais, mudaram conteúdo das provas, retiraram perguntas e forçaram a demissão de 37 servidores do Instituto Nacional de Pesquisa (Inep). Todavia, não conseguirão mais alterar o status quo de expressiva parcela dos cerca de 150 milhões de eleitores. Aprendendo com os erros do passado, esse eleitorado traçou um cenário que determina em quem não se deve votar. Sobra a melhor das perspectivas para uma população que quer recuperar a alegria de viver. E esse panorama parece definido tanto no primeiro quanto no segundo turno. O algoz de Jair Messias Bolsonaro não será Lula, Moro ou alguém da terceira via. Esse papel será do próprio eleitor, o mesmo que, em 2018, assinou um cheque em branco para quem nunca esteve preparado para desempenhar função tão glorificante. A meta para 2022 é que o povo resgate o prazer de ser brasileiro.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978