Atipicamente, acordo com o pequeno relógio do receptor de TV marcando 4h29. Sua tênue luz verde é o único ponto que enxergo no quarto completamente escuro. Tive um sonho no qual estava na cidade de Caxambu procurando lugares por mim bem conhecidos, mas tudo era diferente e construído em outro estilo. A noite e uma tempestade se aproximavam e eu precisava chegar onde estava hospedado, mas não encontrava o caminho. O coração bate forte.
De repente, ouço o canto de um galo. Estou realmente desperto? Sem dúvidas, a ave não habita o território do sonho. Não se encontra muito distante. Estou no Rio de Janeiro, zona norte. Quem, nas redondezas, estará criando um galo? A esta hora, habitualmente, estou dormindo profundamente. Não me recordo da última vez em que acordei tão cedo, e hoje abro os olhos bem na hora do canto desse vizinho misterioso. Sua voz é um chamado da memória. Imediatamente, por seus fios, me conecto a tempos passados, quando, de férias na casa do meu avô materno, era quase sempre despertado pelo canto de seus galos no quintal. Bastava um começar para os outros, a seu turno, responderem num sucessivo coro de vozes tão bem conhecidas.
No agora, tenho sede. Vou à cozinha beber um copo d’água e Juca, meu gato companheiro, também acorda e vai caminhando por entre minhas pernas, miando, com seus grandes olhos azuis arregalados. Se ele soubesse falar a minha língua, não sei se daria bom-dia antes de me pedir que completasse seu pote de ração.
Sorvo a água gelada e lembro que, se estivesse na casa do meu avô, no passado, beberia Salutáris, que era uma marca de água mineral engarrafada na cidade de Paraíba do Sul, muito tradicional, que ele sempre comprava e deixava à disposição quando íamos passar temporadas por lá.
Não raro, sonho que estou, à noite, naquela casa, e preciso transitar entre o quintal e a cozinha. Tudo está absolutamente vazio e sinto frio. Tenho uma sensação estranha de pressa, de solidão. Tento encontrar algo de que preciso, procuro nas gavetas da cômoda no quarto de meu avô, não acho. Bebo Salutáris diretamente de uma garrafa de vidro. A água é gasosa e suave. Como interpretar este sonho e seus símbolos?
Já estou de regresso à cama, e as lembranças vão avançando. Meu avô criava aqueles animais por uma razão nada nobre: frequentava rinhas de galo. Era, inclusive, juiz nas disputas, conhecido em toda a região. Nascera em 1915 e fez isso desde a adolescência. Aos domingos, arrumava-se impecavelmente e saía com seus amigos Rui e Carlinhos, no Fusca azul-escuro de um deles – não me recordo de qual – em direção à arena onde os animais disputariam. Já não se admitia que fosse uma luta sangrenta, pois era suspensa se algum animal se ferisse. As esporas ficavam protegidas e vedava-se o cruel expediente de um aplique afiado de metal, encaixado sobre o bico superior da ave, para afligir ainda mais seu oponente. Meu avô levava sempre dois ou três galos com ele, seus ou de outros “galistas” que confiavam campeões aos seus cuidados.
Havia em Paraíba do Sul, naquela época, um homem muito rico, com fama de arruaceiro e malvado. Quando saíamos para ver na rua o movimento de carnaval, ele estava sempre por lá, líder de um bando. Onde passavam, todos em volta se afastavam e abria-se o caminho, pois as pessoas o temiam. Uma cruzada de olhares de que o homem não gostasse era suficiente para um desafio ou uma briga. Ele dirigia um Ford Landau preto.
Um dia, o Landau estacionou em frente ao beco onde ficava a casa de meu avô. Eu, que brincava por ali, no jardim, com um caminhãozinho verde de plástico de que muito gostava, carregando areia em sua caçamba e construindo estradas, reconheci imediatamente o tal brigão saindo do comprido automóvel. Ele entrou pelo beco e veio em minha direção, chapéu de abas largas na cabeça. Ao chegar perto, indagou-me gentilmente:
– Ô menino, você é neto do Sr. Waldemar?
Respondi afirmativamente e ele:
– Pode ir chamar ele para mim, por favor?
Atendi ao pedido e, logo depois, presenciei a conversa de ambos. Temido na cidade por seus arroubos, ali o cidadão se mostrava completamente normal e conversava, de forma amena e respeitosa, com meu avô, pedindo ensinamentos sobre criação e treinamento de galos, perguntando se ele não tinha algum campeão para vender-lhe. Soube, tempos depois, que meu avô cuidou, em seu quintal, de vários galos desse homem, que valiam uma pequena fortuna.
Antes de adormecer de novo para acordar daqui a algumas horas, espanto-me a pensar em como o simples canto solitário de um galo desconhecido, tão fora de lugar, no fundo da madrugada, é capaz de despertar essas memórias e retirar do fundo de meu espírito cenas remotas, a ponto de lembrar, em detalhes, até mesmo do caminhãozinho verde há tantos anos desaparecido.