Julio Maria
Heráclito das Neves viu seu garoto saindo das bermudas de sua Império Serrano para se lançar como baterista engravatado de orquestras e gafieiras nos anos de 1950 com certa preocupação. O menino era bom, mas precisava colocar os pés no chão, deixar de se sentir o abre alas. “Meu filho, senta aqui. O negócio é o seguinte: não se ache nada não, sabe por quê? O importante nessa vida não é você, mas o que você faz.” O pai matava a charada da vida, reconheceria Wilson Das Neves anos depois, mas havia algo naquele caso específico que não deixaria o ditado vingar. Além de querer o baterista de maior elegância do pedaço, o mundo também gostava de ficar perto do homem.
Wilson das Neves se foi na noite de sábado, 26, aos 81 anos. Ele estava internado em um hospital da Ilha do Governador, tratando de um câncer. Seu enterro será nesta segunda-feira, 28, às 10h, no Cemitério Jardim da Saudade. As reações imediatas à sua partida refletem seu tamanho. “Nosso profundo sentimento com a passagem de Wilson das Neves, um dos mais importantes músicos brasileiros”, Zeca Pagodinho.
“Acabo de sair do palco e de receber a notícia sobre meu amado Wilson das Neves”, Elza Soares. “Dia triste. Foi-se Wilson das Neves”, Fernando Meirelles. “Não há palavras para descrever o que representa a partida de Wilson das Neves. Sorte a nossa, de ter ouvido seus ensinamentos”, Teresa Cristina.
Das Neves era, dos bateristas de sua geração, o mais elegante e mais sofisticado. Não foi Milton Banana nem Edison Machado porque sua história era outra. Das Neves não queria sua bateria destacando-se em alto relevo, como seus contemporâneos do samba-jazz. Seu suingue de volume na frequência perfeita contagiava baixistas dos mais hiperativos, que se viam obrigados a operar na mesma humildade.
Assim, colava o ritmo na música. E como é que faz para suingar baixinho daquele jeito sem perder o tempo? Das Neves levou o segredo.
Ele esteve ao lado de Chico Buarque por quase 40 anos, ausente no disco mais recente, Caravanas, por já estar debilitado. Cantor e compositor da mesma galhardia do instrumentista, fazia seus números nos shows do parceiro assumindo assim o microfone: “Agora vou cantar a música de um rapaz que está começando: Chico Buarque. É uma colher de chá pra ele”.
Depois de ter com Chico uma primeira parceria, Grande Hotel, em 1996, ele entregou uma segunda música ao amigo esperando pela nova parceria. Esperou por anos, cobrou, e nada. Até que em um show, em pleno palco, Chico cantou Samba Para João de surpresa. A música foi gravada no álbum de Das Neves de 2013, Se Me Chamar, Ô Sorte.
A expressão que marcou a figura do homem quase sempre sorridente e ágil nas piadas, “ô sorte”, veio de uma conversa com o amigo sambista Roberto Ribeiro (morto em 1996). Quando Ribeiro chegou na Império Serrano para cantar, viu Das Neves tocando tamborim e quis saber: “Rapaz, você também é imperiano?” “Claro que sou!” “Ô sorte!”
A mesma sorte tiveram Moacir Santos, que gravou seu lendário Coisas, em 1965, com a bateria de Das Neves; João Donato, que fez o álbum Lugar Comum, em 1975, com a bateria de Das Neves; Chico Buarque, que gravou quase tudo o que fez desde 1982 com a bateria de Das Neves, e de Beth Carvalho, Cartola, Nelson Cavaquinho, Clara Nunes, Roberto Ribeiro, Martinho da Vila… Até Sean Lennon teve a bateria de Das Neves em uma de suas passagens pelo Brasil. “Já que não gravei com seu pai, posso gravar com o genérico”, disse para o filho do homem.
Azar apenas de Elis Regina, que demitiu Das Neves, Toninho Horta e toda a banda em pleno palco, nos anos 70. Uma outra história que a alegria de Wilson Das Neves preferia deixar fora do repertório.