A febre do gelo
Capital de ontem escondia corpos de casal de amantes
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emO homem suarento olhava pelo vidro da janela os últimos raios de sol a castigarem a rua vazia. Era o fim de um domingo como tantos outros. Ao longe, dobrava a esquina uma velha carroça com seu cavaleiro estalando o chicote sobre um esquálido cavalo. Os trilhos do bonde pareciam veios de prata sobre as pedras do calçamento. Como estava quente! Era janeiro de 1930. Pleno verão castigava o Distrito Federal. As noites também faziam-se quentes e ainda mais abafadas se não houvesse chuva forte. Olhou para o céu: nenhuma nuvem. Apenas o sinal do escurecimento daquela tarde modorrenta. Cansada. O homem estava tonto de calor. E de aguardente que bebia em generosos goles de uma garrafa sem rótulo.
Na casa do segundo andar, apenas ele. No mais, o silêncio. As grandes janelas arrematadas em cima por arcos ogivais com grossos vidros bisotados logo seriam fechadas. As baratas, ai as baratas. Havia visto algumas no porão, mas as que entravam voando desnorteadas eram piores. Detestava-as. Resolveu ir deitar mais cedo. Cerrou as guilhotinas das janelas e dirigiu-se ao quarto. O único som que escutava agora era o das tábuas corridas rangendo sob seus pés descalços. Tirou toda a roupa e deitou-se nu após dar mais alguns goles na garrafa depois repousada sobre a peniqueira. Antes de adormecer, pareceu-lhe ter ouvido uma voz italiana distante, a buzina de um automóvel… Cerrou pesadamente as pálpebras e procurou abandonar-se, sem remorsos ou dores. Finalmente conseguiu. Ao menos por algumas horas.
O homem, ainda sonolento, acordou sobressaltado com o sol alto. Andava exausto, sempre. Não conseguia comer, não conseguia trabalhar, apenas pensava em Luísa, a esposa. Como ela lhe fazia falta! E em conseguir as duas barras de gelo de 25 quilos que precisava já de manhã. Eram essenciais. E como haviam aumentado de preço. Fazia 38 graus à sombra, as fábricas mal davam conta da sua produção e o risco de desabastecimento de gelo já era noticiado nos principais jornais.
Dias antes, o caminhão da Brahma passara na rua e o funcionário, seu conhecido, havia lhe oferecido duas barras, clandestinamente desviadas de um freguês, por 25$000 cada. Cinquenta mil-réis! Fosse em outra época, o homem haveria de apertar o pescoço do abusado, mas foi no interior da loja, pegou o dinheiro e pagou. Ainda disse “o diabo o carregue”. Ficou com as barras de gelo. Precisava delas desesperadamente. De manhã e ao fim da tarde.
O calor era muito, a testa lhe gotejava, os olhos ardiam de suor já àquela hora. Mas hoje o caminhão da cervejaria dificilmente passaria ali, era preciso ir à fábrica, na Marquês de Sapucahy, ou nalgum depósito do Meyer ou São Christóvão. A última alternativa seria nos armazéns frigoríficos, no cais do porto. Mas tomaria o bonde e voltaria depressa. Levaria as pesadas lonas para envolver as barras e não incomodar ninguém na volta. Os ombros lhe doíam, pois estavam feridos de outros carregamentos da mesma natureza. Era preciso. Era urgente.
O homem desceu as escadas e cruzou o estabelecimento comercial escuro e vazio no andar de baixo. Ali, onde outrora funcionava seu bem sortido armazém de secos, agora era repleto de prateleiras vazias. Havia vendido tudo. Liquidado o que sobrara. O que ficou, estragou-se. E não fez mais compras, não repôs o estoque, não abriu mais as portas. Pensava apenas na esposa. Que falta ela lhe fazia. E nas barras de gelo. Era preciso consegui-las, quatro ao dia. Iria comprá-las mesmo que gastasse até o último real. As economias já andavam parcas. Vestiu calça listrada, suspensórios sobre uma camisa suja – as feridas nos ombros haviam deixado nódoas vermelhas, escondeu-se sob um paletó e um chapéu de chile. E foi para a rua. Era preciso o gelo, sem demoras.
As vizinhas do homem viram-no passar, passos apressados sobre as lajes graníticas da calçada, em busca do bonde que já chegava. Ficaram espantadas com sua aparência esquálida, fraca. Comentavam à meia voz, com carregado sotaque lusíada, como sua figura envelhecera. O rosto sulcado, a cabeleira desgrenhada, o bigode, antes encerado, tristemente caído sobre os lábios apertados. E fazia pouco tempo que Dona Luísa não estava mais ao seu lado. O homem seguia, no toc-toc dos sapatos, e subiu no bonde com tal rapidez que denunciava a pressa, a ânsia, a febre do gelo.
Em todo o trajeto ia se recordando do jeito da esposa, de como os raios de sol da manhã refletiam nos minúsculos pelos dourados de seus braços branquíssimos, nus sob a displicente camisola com que se vestia ao preparar a mesa do café da manhã. Do modo como ela sorria e beijava suas mãos quando ele se despedia e dizia que ia descer para abrir a loja. Da forma com que ela apertava os olhos, muito azuis, ao dirigir-se carinhosamente a ele. Tudo agora era o vazio, a falta daquela existência.
O idílio tivera início em 1925, no casamento ocorrido após breve noivado. Ele, alguns bons anos mais velho, filho de fazendeiro arruinado no interior do Estado do Rio, viera para a capital com sua jovem e linda esposa, filha de colonos europeus, onde abriu um sortido comércio. Acima deste, o amplo sobrado em que habitavam, singelamente mobiliado, mas todo asseado e belo. No terceiro andar, um apartamento ocupando meia planta, que se alugava para aumentar a renda.
Havia oito meses entrara a morar ali um maestro, violoncelista, regente de uma lira daqueles subúrbios. Rapaz belo, de jeitos refinados, com um fino bigode louro e chamativos olhos azuis. Pusera-se a dar aulas do instrumento. Não chegava a incomodar o casal, só angustiando o homem quando notara olhares suspeitos do inquilino sobre sua esposa que, dali para frente, estivera proibida de ajudar no balcão. Um dia, pensou tê-los visto, ao cair da tarde, em furtiva conversa no patamar da escadaria havido no acesso da habitação intermediária. Naquela noite, mantivera fixo o olhar sobre Luísa, mas dissimulara as suspeitas sob condescendente sorriso. Seguiram-se os dias e aquela desconfiança machucava-o. Se ao menos tivesse certeza… Mas o que importava a esta altura todos esses sucessos? Havia somente a ausência da mulher e a premência do gelo.
O homem deixava o depósito de gelo com duas enormes barras sobre os largos ombros que quase se vergavam sob elas. O sol estava inclemente, faltavam-lhe forças. Não se alimentava, apenas bebia de sua aguardente, de seu vinho, de seu conhaque. Em cada uma das espáduas, envoltas em grossas lonas de cujas frestas a água já gotejava, uma pesada barra de gelo. Estava tonto. Perturbado. Era todo sofrimento, remorsos, dores. As barras mais pesavam e mais machucavam. E eram apenas as da manhã. Era preciso repetir o sacrifício pela tarde. E por todas as outras manhãs, por todas as outras tardes. Até quando?
Os olhos doíam, o pescoço doía. Tomava o caminho do bonde com a velocidade que podia. Um passo em falso desequilibrou-o e, tentando poupar as barras da desastrosa queda, não pôde o homem evitar a própria que o arremessou fortemente de encontro ao paralelepípedo, rompendo-lhe a testa. O bonde que se aproximava fez um auto de aluguel desviar-se para ultrapassá-lo e, no movimento, atingiu em cheio o homem caído, matando-o na hora. O sangue escorria e misturava-se à água do gelo, agora em pedaços, e essa nova substância rubra, vermelho tênue, rosa, translúcida, transparente, caminhava em esmaecente fio pela via pública, até ser represada num trilho de bonde em curva. Removido o corpo ao necrotério, demorou três dias até que, graças à vinda de um primo à cidade, o corpo do homem escapasse de ser dado à cova rasa dos indigentes. Terminaram-se ali as saudades, os sentimentos e a solidão diária. E a necessidade do gelo.
Na tarde que se seguiu ao enterro, após chamado de vizinhos, a polícia deu no porão do sobrado e achou num tanque os corpos do violoncelista e de Luísa, amarrados um sobre o outro, feridos, com o espigão do instrumento atravessando os dois pescoços. Foram assassinados pelo homem por ciúme e despeito. Sobre ambos, a água escorrida de barras de gelo que, sempre renovadas, haviam garantido uma precária, mas relativamente segura conservação.