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50 anos depois

‘Capitão Lamarca vive, e é bem maior do que Bolsonaro’

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Autor/Imagem:
Thiago Domenici/Via Agência Pública Jornalismo Investigativo - Foto/Reprodução

Claudia Lamarca é bióloga. A última lembrança que tem do pai, Carlos Lamarca, capitão do Exército que se tornou comandante guerrilheiro ao entrar na luta armada contra a ditadura militar, é a despedida no aeroporto antes do embarque dela e da família para o exílio em Cuba em 1969. “Ele disse: “O pai precisa lutar para que as crianças no Brasil tenham o que vocês têm”. Essa despedida foi muito marcante. Eu tinha 7 anos”, contou em entrevista exclusiva à Agência Pública.

Lamarca, que entrou jovem no Exército, ingressou na luta armada após ter deixado as fileiras militares em 1969. Ele fez parte da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Como liderança da VPR, realizou assaltos bancos e sequestros como o do embaixador suíço Giovanni Bucher, em 1970, que resultou na libertação de 70 presos políticos.

Lamarca deixou a VPR para ingressar no MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro) e foi morto em 17 de setembro de 1971. Hoje, 50 anos depois de sua morte, Claudia endossa o ato organizado por partidos políticos, movimentos sociais e parlamentares em memória do ex-guerrilheiro, que recolocou um busto arrancado em 2017 por Ricardo Salles, que viria a se tornar ministro do Meio Ambiente do governo Bolsonaro, que já citou Lamarca ao menos em 33 discursos no plenário da Câmara desde 1995.

Em 2017, a Pública acompanhou de perto a história do sumiço do busto inaugurado anos antes, em 2012, no Parque Estadual do Rio Turvo, no Vale do Ribeira, um dos locais da base da VPR. Salles, que mandou retirar a homenagem, é alvo de medidas judiciais, mas a situação nunca foi resolvida.

O ex-ministro chegou a dizer em entrevista a Mônica Bergamo que “parque não é lugar para ter busto de herói ideológico de nenhum lado”.

Segundo Claudia, o paradeiro do busto ainda é desconhecido. “Já me disseram que está em algum batalhão em que os militares usam para atirar. Não sei se é verdade”, diz.

Lamarca e outros guerrilheiros enfrentaram na região do Vale do Ribeira a maior mobilização do II Exército de que se tem notícia. A operação Registro, como ficou conhecida, utilizou quase 3 mil homens para sua captura, mas foi frustrada pela fuga de Lamarca e seus companheiros.

Com base em documentos, em destroços localizados no Vale do Ribeira e em relatos dos moradores, a reportagem da Pública contou essa história em detalhes, revelando como a Força Aérea Brasileira (FAB) bombardeou a região onde Lamarca estava escondido em 1970 com bombas incendiárias de Napalm – uma espécie de gasolina gelatinosa incendiária.

Para Claudia, quanto mais os algozes do pai tiverem atitudes arbitrárias, mais eles vão perpetuar o nome Lamarca. “O ato de hoje é um exemplo”, ela diz, que está com um manifesto público no site lamarcavive.com

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Hoje se celebra o ato em memória dos 50 anos do assassinato do seu pai, que foi capitão do Exército, e está sendo colocado um novo busto no Parque Estadual do Rio Turvo, onde em 2017, por ordem de Ricardo Salles, ainda secretário do governo paulista e que viria depois a ser ministro do Meio Ambiente, houve a retirada ilegal de um busto em homenagem ao seu pai e que nunca mais foi encontrado. O que representa, neste momento, o movimento de recolocação do busto? 

Pessoalmente fiquei muito chocada e nervosa com esse ato em 2017 que retirou o busto do meu pai. Era algo que já estava há bastante tempo e aceito pela população. Então, na época fiquei muito contrariada, soltei uma nota de repúdio. Foi uma afronta com quem ficou, com quem restou. Parece que foi algo para magoar ainda mais aqueles que têm o sangue dele.

E hoje a recolocação do busto do meu pai é uma vitória. Eu me senti muito honrada em saber que seria feita essa homenagem justamente numa data tão importante quanto o 17 de setembro. Para mim, a recolocação é a contestação a esse ato arbitrário do Salles.

Afinal, não é retirando um busto que se calam as pessoas, que apaga a memória. Muito pelo contrário: no momento em que o assassinaram, eles perpetuaram o nome Lamarca. Eles foram altamente burros nessa metodologia. No momento em que assassinaram meu pai, eles perpetuaram o nome dele. No momento em que retiram o busto, perpetuam o nome dele. Se retirarem o busto de novo, vão perpetuar mais o nome dele. Quanto mais e mais e mais e mais eles tiverem atitudes arbitrárias, mais vão perpetuar o nome Lamarca.

Quando houve a retirada do busto em 2017, Ricardo Salles não era ministro. Veio a se tornar depois, justamente no governo Bolsonaro, alguém que falou do seu pai inúmeras vezes nos últimos anos como inimigo declarado. Ele até tenta acoplar nessa biografia dele, Bolsonaro, essa suposta participação na busca pelo seu pai quando este estava, na década de 1970, no Vale do Ribeira. Esse governo conduzindo as ações do país faz um link com a sua própria história, história da sua família, história do seu pai de combate à ditadura. Como é isso para você?

Eu costumo dizer que muitas pessoas passaram a conhecer o nome Bolsonaro recentemente. Ele não era representativo no Congresso. Mas eu conheço o nome do Bolsonaro há muitas décadas, justamente porque eu sempre tomei ciência das menções que ele fazia do meu pai. E eu via como um ato desesperado de alguém fora de si, porque falava de uma pessoa morta que não podia se defender.

Então existe uma covardia nesse afronte dele ao falar sempre do Lamarca. Até porque Lamarca é muito maior do que Bolsonaro. A coragem que ele teve em todos os atos… Bolsonaro nunca teria essa coragem de largar tudo em prol de um ideal verdadeiro, que se acreditou verdadeiro. Então eu conheço esse afronte, porque já não é mais o Lamarca que escuta, somos nós que escutamos. Mas sempre disse pra mim que não vou dar papo pra maluco.

Quanto ao Salles, ele era secretário do Meio Ambiente de São Paulo e ele promoveu esse ato arbitrário, covarde, contra um busto. Depois disso, ele teve o agraciamento por ter feito esse ato pelo Bolsonaro. “Ah, você fez, então toma esse cargo aqui.” Colocar uma pessoa que não tem o mínimo tato com o meio ambiente, com as comunidades indígenas que ocupam a Amazônia, é incompetência. Salles não tem conhecimento científico, técnico, para cuidar do meio ambiente. Ele se tornou uma pessoa justamente contrária ao meio ambiente. Então acredito que foi uma medalha que Bolsonaro deu a ele por aquele ato lá atrás de arrancar o busto do meu pai.

E até hoje não se sabe o paradeiro do busto do seu pai, não é?

Não se sabe. Já me disseram que está em algum batalhão em que os militares usam para atirar. Não sei se é verdade. Não tenho prova disso.

Lamarca desertou do Exército para se tornar líder de grupos armados de resistência à ditadura militar, justamente por não concordar com o que se tornou o país naquele período. Se não se incomodar, gostaria de saber como isso impactou vocês na dimensão familiar?

Não me incomoda falar, mas é a única parte que mais mexe comigo. É meu pai. Eu tenho muito forte a memória do aeroporto, da nossa despedida. Ele já tinha conversado com a gente, éramos muito crianças, eu tinha 7 anos, e ele conversou com a gente dizendo: “O pai precisa lutar pro Brasil para que as crianças tenham o que vocês tem”. Essa despedida foi muito marcante. Ele carregava flores para minha mãe, e foi ali o último beijo, o último abraço, sendo que havia a promessa de que a gente ia se reencontrar dali uns anos. E não foi o caso. Dois anos depois ele foi morto.

E quais memórias você tem dele como pai?

Era um pai família, um pai presente, um pai brincalhão, um pai que dançava, um pai que fazia cabaninha. Era um pai gostoso. Era um pai bom de se ter. Ele tinha essa coisa de sempre estar presente mesmo, queria estar no jantar com a gente porque durante o dia ficava no quartel. Muito família, amava o pai, amava a mãe. Nós morávamos na Vila Militar em São Paulo, mas na minha memória sempre estava a reunião em família no Rio, essa coisa da família toda reunida no Ano- Novo e no Natal. Ele tinha uma personalidade muito marcante, muito cativante. E nós recebemos cartas dele no exílio em Cuba. Foram algumas cartas e fomos crescendo em Cuba, e isso [as cartas] alimentava alguma esperança. São cartas lindíssimas que a gente guarda com muito carinho. Então eu sempre me senti muito amada. Ele me apelidou de Catanga. Eu sinto muito ter perdido meu pai. Acho que teria sido ao longo da minha vida um grande amigo também.

Como vocês chegaram em Cuba após a despedida no aeroporto?

O destino final era Cuba, mas nós despistamos. Foi dito no Exército que a gente estava indo para a Europa a passeio. Primeiro Tchecoslováquia, e depois fomos ao Canadá e de lá para Cuba. Eu não tinha noção do que era aquilo tudo. Nós ficamos trancados num hotel em Praga e não podíamos sair. Eu não entendia isso, que passeio era esse que ninguém podia sair daquele hotel. Um frio danado. E teve o contato de uma pessoa que trouxe as passagens. Havia toda uma teia de organização. Ficamos uma semana mais ou menos em Praga, e no Canadá foi só trânsito mesmo. Foi chegar e ir pegar o avião para Cuba. Em Cuba ficamos dez anos no exílio, de 1969  até 1979, quando houve a Lei da Anistia no período Figueiredo.

Como foi a chegada no Brasil depois de tanto tempo?

Fomos um dos primeiros grupos a retornar do exílio. Tanto que o depoimento na Polícia Federal foi com o Fleury [Sérgio Fernando Paranhos Fleury]. Naquele momento eu não sabia quem era a figura. Ele perguntou o que a gente fez em Cuba…

A Arquidiocese de São Paulo nos recebeu na época. Depois de São Paulo, nós viemos para o Rio. Em São Paulo correu tudo bem. No voo de São Paulo para o Rio, o avião demorou a pousar, e quando pousamos tinha uma fileira dupla do Exército esperando a gente desembarcar. Minha família toda estava no aeroporto. Esperavam que a gente fosse desembarcar sem ninguém, mas com a família estavam os amigos fizeram um estardalhaço contra aquela situação. “Tão levando elas.” Colocaram a gente numa sala e viram que a coisa ia extravasar e soltaram depois. A justificativa que deram é que havia um assaltante no voo, o que nunca foi comprovado.

O fato de Lamarca ser do Exército e ter saído tem que peso na perseguição a ele?

O Exército se sentiu traído pelo Lamarca, sendo que ele era um excelente militar. À diferença de alguns, ele sempre foi um militar exemplar. Então era assim, como se perdessem um filho. Ele era respeitado dentro do Exército, estava estudando para uma promoção. Acho que eles não esperavam realmente que o Lamarca fosse tomar um posicionamento contrário ao que estava acontecendo. Meu pai começou a se inquietar com o que ocorria dentro do Exército. Minha mãe me contava que ele chegava muito nervoso com a situação que ele via todo dia. Por exemplo, água pingando na cabeça como forma de tortura aos oposicionistas. Isso também determinou a saída do meu pai para a luta armada. Mas essa rinha, esse ódio, é justamente o fato de ele ser militar. Tanto é que na Comissão de Anistia os militares começaram a ficar incomodados justamente quando houve o assunto do meu pai ser anistiado.

Nos seus escritos, seu pai tinha aquela famosa frase: “Ousar lutar, ousar vencer”.  Eu queria saber de você qual é a luta a ser vencida hoje?

É uma pergunta forte, né? A gente tem várias lutas a serem vencidas. O governo atual representa todas as pautas que já deveriam estar encerradas. A democracia não se discute, ela tem que estar e pronto. O que existe hoje é uma estratégia de tirar tudo do indivíduo. E no exato momento em que você tira tudo ele aceita qualquer coisa e agradece pelo nada. Eu digo: não cabe ditadura. Coitado do povo que pede a ditadura e intervenção militar. Então essas várias lutas precisam ir contra o fascismo. Não pode existir espaço para fascismo, não pode existir espaço para misoginia, preconceito, racismo e homofobia.

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