Notibras

Carmelo, manso como ovelha, tinha lá suas iras

Carmelo era como uma ovelha, difícil de ficar aborrecido. No entanto, quando a zanga o tomava, era difícil de recolocá-lo no prumo. Rodava a língua afiada para todo lado, palavrão é que não faltava. Até a dona Laura, vizinha afamada pelas caridades que fazia, perigava ser alvo de algum impropério.

Casado com Juliana há quase duas décadas, poderíamos afirmar que praticamente não ocorria desavença entre os dois. Brigona que era, a mulher sabia se impor e, caso precisasse levantar a voz, a única que seria ouvida naquela casa seria a dela. E ai do Carmelo reclamar. Era, por baixo, dois dias dormindo no sofá.

O homem, acostumado que estava em engolir desaforo da esposa, tratou logo de arrumar uma válvula de escape para os momentos de descontrole. Mas não pense você que foi coisa fácil de descobrir. Não mesmo!

Tentou caminhar, mas logo percebeu que gastaria a sola do sapato antes que a raiva fosse dissipada por completo. Correr também não serviu para tal propósito, já que o fôlego de fumante inveterado o dissuadiu da ideia. Um amigo o convidou para jogos de poker, mas a sorte não andava ao seu lado.

Quase desistindo, Carmelo, logo após levar uma bronca daquelas da Juliana, foi até a varanda do apartamento para gritar o grito dos enraivecidos quando, por um desses acasos, avistou um velho sentado no banco da pracinha ao fundo. O sujeito parecia entretido na leitura de um livro, cuja capa era difícil de ser notada.

Curioso, Carmelo desceu as escadas e foi em direção ao senhor, que ainda mantinha os olhos direcionados para as páginas repletas de letras. Por um instante, o leitor observou o homem se aproximando e, antes de se apresentarem, retirou do bolso do paletó outro exemplar de “A verdade nos seres”, do poeta Daniel Marchi, e o entregou a Carmelo.

— Meu amigo, pela sua cara, você está precisando de um pouco de poesia na vida.

*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.

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