Mistura folclórica
Carnaval e futebol criaram histórias inesquecíveis quando Brasil era da paz
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Mistura poética e amplamente democrática, futebol e Carnaval convivem entre o sagrado e o profano. O que ninguém pode dizer é que nelas as palavras de ordem ainda são a paz, a alegria e o amor livre. Às vezes, sinto saudade dos meus maravilhosos tempos de repórter esportivo e carnavalesco do Rio de Janeiro. Tempos difíceis. Sem celular, laptop e Google para pesquisar, restavam a obrigação de ouvir bem e a criatividade para filtrar o que ouvia. O que sobrava da matéria enviada para edição no jornal do dia seguinte era o que rendia histórias impagáveis, inesquecíveis, aparentemente improváveis, mas até hoje partes de qualquer roda de amantes ou simpatizantes do samba e esporte, particularmente do futebol. São as reminiscências do Brasil da ingenuidade, mas da camaradagem e da solidariedade. Nenhuma das histórias era para boi dormir.
Durante algum tempo colecionei frases que ouvi de sambistas e de jogadores ou que me foram ditas por colegas que um dia cobriram as quatro linhas e as quadras das escolas. Parei de colecionar porque o futebol e samba não tem mais histórias gostosas. Folclóricas ou não, todas marcaram pela ingenuidade como foram pronunciadas. Por enquanto, ficarei com as do futebol. Craque na arte de fazer gols, Dario, o Dadá Maravilha, certamente é o recordista de bordões engraçados. Quem não se lembra das célebres “Somente três coisas param no ar: o beija-flor, o helicóptero e o rei Dadá” e “Não me venha com a problemática que eu tenho a solucionática”? Cabeceador e artilheiro como poucos da época, Dario era tão bom que para pegá-lo na corrida “só se fosse de táxi”.
Para Dadá não havia gol feio. Feio era não fazer gol. Também artilheiro, o centroavante Jardel, ex-Grêmio, Porto de Portugal e Seleção Brasileira, surpreendeu os jornalistas ao informar que, durante um jogo contra o Internacional, sua naftalina tinha subido a níveis inimagináveis. Outra pérola jardeliana foi o anúncio a uma rádio gaúcha que ele, Paulo Nunes e o meio campista Dinho formariam uma dupla sertaneja. Não me lembro se no fim dos anos 80 uma dupla podia ser de três. Pior foi o espanto do moço ao “perceber” que no Japão só havia carros importados.
Meu contemporâneo na épica Gávea de Zico e companhia – ele celebridade e eu foca -, Nunes, o Diabo louco, mostrou que realmente era do outro mundo ao afirmar que se sentia realizado tanto na vida futebolística quanto na sua vida ser humana. Diante da incredulidade dos repórteres com um gol mágico contra o Atlético Mineiro, Nunes foi absolutamente didático: “A bola ia indo, indo, indo… e iu!” Querem definição melhor para um gol? Façam um! Protocolar, bajulador, mas pragmático foi o zagueiro Fabão ao ser apresentado à torcida do Flamengo: “A partir de agora, meu coração tem uma única cor: vermelho e preto”. Ainda bem.
Sem papas na língua, Braddock, parceiro de Romário no Vasco, reclamou aos berros de um passe sem medida do companheiro: “Nem que eu tivesse dois pulmões eu alcançava essa bola”. Ex-ponta esquerda do Santos, Ferreira foi ídolo no México, onde jogava e recebia semanalmente de 15 em 15 dias. Religioso de carteirinha, Claudiomiro, ex-meia do Inter de Porto Alegre até hoje é lembrado pelo orgulho de ter jogado em Belém, terra em que nasceu Jesus. Já vi de tudo nos campos de futebol, mas nada igual ao reconhecimento demonstrado por Zanata, lateral do Fluminense, ao povo baiano. Em agradecimento aos tempos da Catuense e do Bahia, ele elogiou a simpatia e hospitalidade da baianada afirmando que o povo de lá é muito hospitalar. Eterno presidente do Corinthians, Vicente Matheus é uma celebridade no assunto.
Do tipo CB, isto é, sangue bom, para ele jogador de futebol tinha (e tem) de ser completo como o pato, que é um bicho aquático e gramático. Cartola de arquibancada, no começo de qualquer competição Matheus não tinha meio termo: “Haja o que hajar, o Corinthians será campeão”. Que eu me lembre, a única bola fora do dirigente foi ele jurar que “Sócrates era invendável, inegociável e imprestável”. Na semana seguinte o Doutor foi vendido para a Fiorentina. Vicente Matheus morreu sem o perdão do bando de loucos. Distante dos gramados e da avenida, meu futebol e o Carnaval têm sido no sofá. Será que já posso ser considerado um mestre-sala? Enquanto pensam, eu peço: Mesmo longe, “me ajude a segurar essa barra que é gostar de vocês”, futebol e Carnaval. Um dia ainda falo da carnavalização do Carnaval.
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*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978
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