Joana e Francisco
Casal vive realidade e devaneios até a viuvez
Publicado
emJoana, mulher afeita à matemática desde sempre, foi se enrabichar justamente pelo Francisco, apaixonado em todo o seu ser por poesia e religião. Não que os números sejam apenas dígitos, mesmo porque a aritmética, a álgebra e a geometria têm lá seu lado encantador, apesar da maioria das pessoas só enxergar a sua faceta lúgubre. E aqueles dois se entenderam entre versos livres ou amarrados a unidades, dezenas, centenas e alguns milhares. Coisas do coração.
Apegada à realidade, Joana não se importava se o amado conseguia ver a força de Deus em tudo. Até quando Francisco ficou encucado que o perímetro de um quadrado poderia ser o mesmo de um retângulo, mas suas áreas seriam distintas, ele, olhos arregalados, exclamou: “Que maravilha! Só Deus poderia fazer isso possível!” A mulher, apesar do espanto pela maneira mística do homem enxergar a ciência, não quis buscar pendenga, mesmo porque Francisco beijava bem.
E assim aqueles dois foram se ajeitando. Joana, depois de alguns anos de união estável, se viu grávida de gêmeos. Ficou receosa do marido se desesperar com a notícia e, somente após o quinto mês, Francisco desconfiou.
— Meu amor, ou você está mais gordinha ou, então, vamos ser abençoados com a chegada de um bebê.
— Duas.
— Duas o quê? Não entendi, Joana.
— São gêmeas.
Francisco, ao pé da barriga da mulher, começou a falar que tudo aquilo era mais um presente de Deus. Ela, por sua vez, pensou em questionar o marido: “Será que você se esqueceu que fazemos amor regularmente?” Mas deixou quieto. Melhor viver em paz, ainda mais porque precisava arrumar as coisas para as crianças que iriam chegar.
Maria Luiza e Luiza Maria nasceram no início de setembro. Deram muito trabalho, é verdade. Todavia, as alegrias foram tantas, que Francisco até questionou a esposa sobre novos filhos. Joana, mais racional, talvez tenha perdido um pouco a linha, mas nada que pudesse condená-la. Afinal, puerpério tem essas coisas.
— Tá maluco, Francisco?
Nunca mais tocaram no assunto. As meninas, cada vez mais fortes, cresceram e, não tardou, chegou o tempo de creche, escola, vestibular, faculdade, primeiro emprego. Quando os pais perceberam, aquelas duas já carregavam no colo as próprias crianças. E assim as coisas aconteceram e continuaram acontecendo, até que, repentinamente, o coração do Francisco parou. Parou de vez, como era nítido ao vê-lo gélido naquele caixão.
Joana, chorosa, foi consolada pelas filhas. Triste momento após quase 50 anos de relacionamento. Maria Luiza e Luiza Maria, cada uma de um lado, abraçaram a mãe.
— A vida é como uma vela acesa, meninas.
— Uma bênção divina, né, mamãe?
— Não, Maria Luiza. Com um sopro, se apaga.