Adeus
Casamento, (in)compatibilidades e decisões impostergáveis
Publicado
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Caríssima esposa,
Estou escrevendo essa missiva com o objetivo de comunicar-lhe uma importante resolução por mim tomada na virada do ano.
Antes, todavia, desejo fundamentar tal decisão e justificar o seu caráter absolutamente irrevogável.
Entre outras e diversas situações de profunda incompreensão entre nós, relaciono aqui as suas objeções mais comuns ao nosso enlace conjugal mais íntimo durante o decorrer do ano passado:
-Estava muito frio;
-Estava muito calor;
-Estava gripada;
-Estava com dor de cabeça;
-Estava com dor de dente;
-Estava com dor de estômago;
-Estava muito cansada;
-Estava estressada;
-Estava ocupada com algo urgente;
-Estava “naqueles dias”;
-Não estava a fim.
Por fim, quando quase aconteceu, perdi a concentração no momento em que você – acredito que inadvertidamente – falou:
-Esse teto está precisando de uma pintura nova.
Desta forma, apesar dos meus reiterados e carinhosos esforços diários para te seduzir, não foi possível consumarmos a nossa relação de marido e mulher nos últimos 365 dias do ano findo.
Creio que concordas que tal situação sinaliza uma aguda disruptura no nosso planejamento de vida, visto que, se há dois anos optamos por nos casarmos, é de se supor que não desejávamos exatamente um estilo de vida monástico e casto.
Isso posto, vamos à segunda parte dessa missiva.
Lembras da nossa vizinha do 303, aquela moça que – assim como você – também é modelo profissional e de quem (não consigo atinar o motivo) você nunca gostou??!
Então…conversei muito com ela durante esse ano nas ocasiões em que nos encontrávamos no jardim do condomínio para fumar, visto que tu odeias que eu faça isso dentro do nosso apartamento.
Antes que questiones, quanto a ela, que mora sozinha, eu nunca quis perguntar porque não fuma no interior do próprio apartamento.
Confesso que esses encontros, muito mais do que um hábito, acabaram se tornando um grande prazer para ambos. Devo dizer que ela, muito mais que lindíssima, simpática, educada, inteligente, culta, sincera…também é muito observadora.
Por exemplo, ontem ela me perguntou se o nosso apartamento tem muitos problemas que necessitam de contínuos consertos. Eu disse que não…e questionei a razão da pergunta.
Aí ela falou que imaginou isso porque o jovem e malhado (grifo meu) zelador do prédio visita regularmente o nosso apartamento três vezes por semana, coincidentemente, sempre quando lá não estou.
Outrossim, também admito que, durante o ano, trocamos muitas confidências. Há algum tempo ela já sabe – me perdoe por isso – que o nosso casamento não é propriamente uma união feliz.
E hoje, ela repetiu (pela décima vez) o convite para eu mudar para o apartamento dela e lá permanecer pelo tempo que eu desejar…muito gentil e sugestivo, não?
Então, considerando o contexto aqui abordado, dessa vez decidi aceitar o gracioso convite dessa adorável vizinha. Assim, não te preocupes comigo, pois já sabes onde estarei no momento em que você estiver lendo a presente missiva.
Destarte, finalizo com algumas sugestões para o nosso futuro bem-viver a partir de agora:
– Marque um dia e uma hora apropriada para discutirmos a divisão dos bens (o Neruda que você nunca leu já está comigo) e para depois irmos ao cartório formalizarmos a separação.
– O nosso (agora seu) apartamento está livre para o seu amigo (?!) zelador se instalar definitivamente por aí e, assim, finalizar todos os devidos e intermináveis consertos necessários, caso, é claro, ele também consiga entrar em um acordo harmonioso sobre isso com a graciosa (mas brava) esposa dele.
No mais, desejo um ano repleto de felicidades e realizações para você, assim como, tenho certeza, será o meu.
Sinceramente, José Carlos (Jó)
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