Paulo Nascimento é um cineasta gaúcho autor de uma obra irregular, por certo, mas que nem por isso deixa de ser interessante. Diário de Um Novo Mundo, Valsa para Bruno Stein, Em Teu Nome, A Oeste do Fim do Mundo são filmes divididos – entre duas culturas, diferentes nacionalidades. Nascimento flerta com um cinema continental, às vezes trans. Coproduções com Uruguai, Argentina, Portugal. O diretor está de volta com Teu Mundo não Cabe nos Meus Olhos. Edson Celulari faz um pizzaiolo cego do Bixiga. É casado com uma argentina descendente da aristocracia ruralista. O papel é interpretado por Soledad Villamil.
Você sabe quem é. Soledad é uma atriz e cantora, argentina como sua personagem. Trabalhou nos filmes de Juan José Campanella, formando dupla com Ricardo Darín em O Mesmo Amor, a Mesma Chuva e O Segredo dos Seus Olhos. Em agosto passado, Soledad recebeu em Gramado o Kikito de Cristal, prêmio outorgado a uma grande personalidade do cinema latino-americano. O prêmio surgiu com um perfil rigoroso, destacando pensadores do cinema. Ultimamente, virou pop. Em 2016, premiou a atriz de Pedro Almodóvar, Cecilia Rorth, de Tudo Sobre Minha Mãe. Em 2017, Soledad – Sole, para os amigos.
Ela fez em emocionado discurso de agradecimento. “Nesses dias em que estou em Gramado, sinto como se estivesse flutuando, num sonho, a um metro do solo. Quando criança, havia uma ditadura na Argentina. Brutal, sanguinária. Meus pais buscaram refúgio no Brasil e eu, menina, tímida, fui parar numa praia brasileira cheia de crianças. Acolheram-me como se fosse uma delas. Adulta, me propuseram um filme (o de Nascimento). Encontrei o mesmo carinho, a mesma receptividade. O Brasil é um sonho para mim.” Em Gramado, Sole deu canja e cantou, a capella, uma música do novo disco, Ni Antes ni Después. Só canções compostas por ela. “Quando sou atriz, interpreto papéis escritos por outras pessoas. Coloco-me a serviço dos personagens e dos atores. Quando canto, a autora sou eu. O que expresso é a minha intimidade.” Sole aproveita para dizer que em junho voltará a São Paulo para fazer o show de lançamento do disco no Brasil. Está cheia de expectativas.
No filme, ela abre mão de muita coisa para ficar com o marido cego. Ele ganha fama, a pizzaria cria clientela. O pizzaiolo que, privado da visão, vê o interior da pizza – a massa – como se estivesse tentando decifrar o interior das pessoas. Teu Mundo não Cabe nos Meus Olhos nasceu do entusiasmo da coprodutora de Nascimento, que um dia chegou para ele contando o que parecia uma história extraordinária. O desenvolvimento científico e tecnológico criou ferramentas para que cegos de nascença façam cirurgias de recuperação, mas muitos, vejam só, não resistem à pressão de, ou para voltar a ver, e fazem cirurgias de reversão. Preferem ficar cegos. Édson Celulari faz esse cego que não quer enxergar. A mulher, a filha, o próprio cara que trabalha com ele, de certa forma sendo a sua muleta – Leonardo Machado, numa bela interpretação –, todos os exortam a se operar. Ocorre um incidente. A pizzaria é invadida por assaltantes, quando Vittorio – o personagem de Celulari – está sozinho. Abusam dele, humilham-no. Ele cede e aceita fazer a cirurgia.
Passa por uma verdadeira provação. Diante da massa, ou do forno, cerra os olhos. Não quer ver. Há anos Celulari vem sendo parceiro de Nascimento. Ele lhe fez a proposta (indecente?) – “Topa engordar 20 quilos para fazer um cego?” Duplo desafio. Celulari mordeu a isca. “Não sabia como interpretar um cego. Às vezes, parece tão falso. Mas aí, pesquisando, eu vi um vídeo de duas meninas orientais. Tem gente que não quer ver, mas elas eram muito jovens. Dava para sentir o deslumbramento da descoberta da luz. Serviram de guia para mim.” E havia, claro, o drama – essa divisão interna que sempre atinge os personagens de Nascimento. “Não era só uma coisa física, uma postura, uma atitude. Tinha também a motivação, ou falta de, interior. Tudo isso me motivou muito.” Celulari já fez mais cinema. Hoje anda mais seletivo. “Tem de ser alguma coisa especial. E o que é especial? Tem gente que não vai gostar, que vai achar o filme fraco. Estão no seu direito. Mas eu sinto que o filme toca em questões profundas, viscerais. Dizem respeito à identidade de cada um, ao casal.” A filha sonha estudar na América, mas está presa no Bexiga. Leo Machado quer que o ‘chefe’ recupere a visão, mas sabe que, se isso ocorrer, não será mais necessário. Todo mundo dividido.
Edson Celulari e Soledad Villamil em ‘Teu Mundo não Cabe nos Meus Olhos’. Foto: Paris Filmes
Televisão. Ele estava em O Tempo não Para e estará na próxima novela que vai substituir Deus Salve o Rei. “Rei será estendida até depois da Copa, mas já vamos começar a nos reunir para gravar. Será outra novela de época, mas diferente. No Brasil do século 19, uma família muito rica – pai, mãe, filhos, escravos – viaja à Europa, mas toma o caminho mais longo, descendo até a Patagônia para subir a América do Sul pelo Pacífico. O navio colide com um iceberg. Corte e cento e tantos anos depois um bloco de gelo chega ao litoral de São Paulo. E toda aquela gente congelada toma o choque ao descobrir um outro mundo, um outro Brasil. O texto vai colocar ênfase na comédia. Claro que o público vai ter de entrar no espírito da coisa, mas acho que vai ser bacana.”
Filme, novelas – sempre o choque entre dois mundos. Será que isso quer dizer alguma coisa? “Quando escrevia O Teu Mundo, dei-me conta dessa polarização que rachou o Brasil por causa da política. O filme não é sobre isso, mas a sensação está lá. Não é sobre operação dos olhos, que também está lá. Não estou querendo reinventar o cinema – seria muita presunção –, mas a ideia de propor um outro olhar é muito forte”, diz o diretor. E, claro, tem o desafio da produção. O bairro, as externas, são o Bexiga, mas as internas, a cirurgia, foram num hospital em Porto Alegre. O filme viabiliza condições para quem filma fora do eixo. Há que ousar. Não conhecia Soledad, mas queria ela. Na verdade, tinha duas atrizes em mente, a outra brasileira. Mas queria a Sole. “Um amigo de um amigo me deu o contato. Ela marcou de tomarmos um café. Chegou com a personagem pronta, tinha feita sua lição de casa. Cinema é como casamento. Tem de ter entrega, paixão, e os meus atores tiveram isso.”