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Semipresidencialismo

Cercado por hienas, Lula vive com mão na frente e outra atrás

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Autor/Imagem:
Roberto Amaral* - Foto de Arquivo/Marcelo Camargo - ABr

Na sequência do óbito do “presidencialismo de coalizão”, um invento acadêmico, vivenciamos significativas alterações no funcionamento das instituições. De aparência superficial, elas no entanto podem resultar em distúrbios estruturais na natureza do regime, mutante a partir do jogo das forças políticas do sistema. Evidentemente sem jamais ameaçar os interesses da classe dominante. Ocorrem, repito, na superfície.

Tratam-se de recomposição dos pesos e competências dos poderes da República, que se processa no mundo da vida real, à margem do ordenamento constitucional, ainda intacto na sua formalidade. Embora não responda a um chamamento do processo social, o redemoinho atende a necessidades do processo político, ditadas, na origem, pela crise da representatividade que nos acompanha desde sempre.

Soma-se a isso uma correlação de forças que não se conforma no pronunciamento eleitoral de 2022. A resistência é fática, e caminha da Faria Lima à caserna, reanimada com a impunidade com que a afaga o Ministério da Defesa, sob controle do castro, hoje como dantes.

O fenômeno abarca algo além da crise do presidencialismo tout court, para nele pôr de manifesto a fragilidade do Poder Executivo e mesmo de sua chefia, como se verá, em que pese a legitimação emprestada pela soberania popular, fonte da democracia liberal, como é descrita nos manuais escolares.

O fato objetivo sobre o qual nos debruçamos é este: jamais, na República em suas fases de relativa normalidade, os poderes constitucionais clássicos foram tão desarmônicos e jamais tanto disputaram entre si a hegemonia, como agora.

Se nos idos de 2013 o aprofundamento da crise política já o anunciava, para os que tinham olhos para ver, o fenômeno presente de desorganização institucional deita raízes em 2016, quando a Câmara dos Deputados, sob o comando de um meliante, logrou paralisar o Executivo e, afinal, cassar o mandato legítimo e legal da presidente Dilma Rousseff, a pretexto de um crime ausente.

Para o novo presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, o fenômeno, que ele celebra como avanço civilizatório, tem origem nos méritos da Carta de 1988, a partir de cujo mandato “O Estado voltou ao seu tamanho natural, o Legislativo se expandiu, e o Judiciário viveu seu momento de expressiva ascensão institucional”.

Sem abdicar do projeto protofascista, o capitão autoritário (de triste memória) é obrigado a ceder espaços de governo ao Legislativo; daí em diante, o presidente da Câmara, principalmente quando enfeixa a gerência do “Centrão”, entra a agir como se primeiro-ministro fôra, em um presidencialismo canhestro que começa a assumir as feições de um Frankenstein.

É o presidencialismo transformista de nossos dias. O Executivo é obrigado a ceder espaço ao Congresso e ambos se encontram em frente a um Judiciário sedento de holofotes e poder político.

Nas eleições de 2022 a democracia se vê momentaneamente salva (ainda hoje comemoramos sua sobrevivência), mas o decreto da soberania popular não fornece a Lula as precondições de um governo forte, na tradição presidencialista brasileira.

Ademais da estreita margem de votos com que coroa o vencedor, elege um Congresso majoritariamente reacionário – o mais reacionário e fisiológico de quantos a história registra –, comprometido com a miséria da política, desapegado a valores éticos. São essas condições – uma maioria que enseja o controle das votações – que o credenciam a partilhar o governo.

Na primeira legislatura da democratização, o deputado Roberto Cardoso Alves, líder do “Centrão” daqueles anos, cunhou expressão que ficaria famosa nas antessalas dos gabinetes de negócios: “É dando que se recebe”, que Arthur Lira atualizou para “É recebendo [cargos e verbas e prebendas] que se dá votos”.

Embora perdidas as eleições presidenciais, o “Centrão” ganha o governo mediante a fórmula da coabitação, e o governo que venceu com um discurso de centro-esquerda é condenado a governar com a direita parlamentar, guardiã do atraso, de quem depende sua estabilidade.

Nesse novo presidencialismo, construído ao sabor da conjuntura, releva como paradigma da nova ordem a recente reunião do presidente do Senado Rodrigo Pacheco com ministros do governo Lula (guardando convalescência de uma delicada cirurgia) para discutir combate à fome, garantia de segurança alimentar e redução do desperdício de alimentos, clássicas funções de governo.

As condições objetivas favorecem tanto o Poder Legislativo quanto o Judiciário, sempre em prejuízo do Executivo. O STF assumiu o papel de agente supremo das instituições, algo como um novo “poder moderador” (tão requisitado pelos fardados), legislando, ditando linhas de ação e, até, julgando, sem perda de sua natureza eminentemente política.

Significativo, sintomático até, é o discurso de posse do novo presidente do Supremo, falando como se assumisse a presidência da República, eis que apresenta uma plataforma de governo, assim resumida: combate à pobreza; desenvolvimento econômico-social sustentável; prioridade máxima para a educação básica; investimento relevante em ciência e tecnologia; investimento em saneamento básico; habitação popular; retorno do Brasil à sua posição de liderança global em matéria ambiental.

Plataforma ambiciosa, grandiloquente, que parece não caber nos estreitos limites do artigo 102 da nossa maltratada Constituição, que cuida das atribuições do STF.

O Executivo parece ressentir-se do cerco, enfraquecido em face das articulações levadas a cabo com o presidente da Câmara e gerente do “Centrão” que desnaturaram o ministério original, preço cobrado para evitar as amarguras que marcaram o frustrado segundo governo Dilma, aquele que não aconteceu.

Enquanto Congresso e STF disputam a cogestão, os militares voltam a agir como um poder autônomo e, perigosamente para a democracia enferma, tudo permanece como dantes no castelo de Abrantes. Ou seja, à margem da sociedade real.

*Ministro da Ciência e Tecnologia no primeiro governo Lula

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