Em queda na Amazônia neste início de ano, o desmatamento, no Cerrado, segue em franca aceleração. A perda de vegetação entre 1º de janeiro e 31 de maio, de acordo com o sistema Deter, do Inpe, foi 35% superior à registrada no mesmo período no ano passado, atingindo o maior valor para esses cinco meses desde o início do registro histórico, em 2018. Na Amazônia, ao contrário, o período apresentou uma queda de 31%.
O dado preocupa não apenas pela tendência de alta que ele aponta, mas também pelo volume. Em números absolutos, o desmatamento no Cerrado em cinco meses foi quase 78% superior ao realizado na Amazônia: 3.532 km² tombaram na savana brasileira, ante 1.986 km² na floresta tropical.
Lembrando que esses são números do Deter, que é o sistema de detecção em tempo real do que está acontecendo em campo, a fim de orientar a fiscalização. Ele indica um cenário, mas não é o dado oficial de perda, esse sim fornecido pelo Prodes. Em geral o Deter vê rápido, digamos assim, mas não vê tudo.
Se por um lado parece estar funcionando a retomada das ações do Ibama e de uma política de Estado que deixa claro que o desmatamento ilegal não vai mais ser tolerado na Amazônia, no Cerrado a motosserra está correndo solta sem dó. E, ao que tudo indica, sem resistência.
Ao anunciar esses dados na semana passada em uma coletiva de imprensa, o secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco, alertou para a suspeita de que uma boa parte desse desmatamento pode estar ocorrendo com autorização dos Estados, ou seja, de forma legal.
Uma reportagem que fiz com meu colega aqui da redação, o Rafael Oliveira, em meados de maio já tinha revelado isso: está muito fácil desmatar no bioma.
Ocorre que no Cerrado a exigência da lei é muito menor que na Amazônia.
“Propriedades rurais que ficam dentro do bioma amazônico, ou seja, na floresta, precisam preservar 80% de seu terreno como Reserva Legal, de acordo com o Código Florestal. Já no Cerrado, se for dentro dos limites da Amazônia Legal, essa exigência é de 35%. Fora disso, nas outras partes do país por onde o Cerrado se espalha, é ainda menor: 20%”.
É justamente o caso do Matopiba – fronteira agrícola que se estende por partes de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. É onde se concentra a maior parte das perdas no Cerrado observadas não só de janeiro a maio, mas ao longo dos últimos anos. Entre as dez cidades com mais supressão no Cerrado em 2023, seis deles estão no oeste da Bahia.
Um outro levantamento, divulgado nesta segunda-feira, 12, traz mais elementos que indicam isso. O Relatório Anual do Desmatamento em 2022, divulgado pelo MapBiomas, apontou que o Matopiba concentrou 26,3% da área desmatada no país no ano passado. Foram 5.418 km2 desmatados – um aumento de 37% em relação a 2021.
Os cortes no Matopiba também respondem pela maior parte dos desmatamentos no Cerrado: 82% da área de supressão de vegetação nativa do bioma.
Ainda segundo o levantamento do MapBiomas, o maior desmatamento detectado no ano passado no país foi no cerrado do oeste baiano, no município de Formosa do Rio Preto, dentro da Área de Proteção Ambiental do Rio Preto. Uma supressão de 12.271 hectares autorizada pelo órgão estadual.
“Nós estamos assistindo uma corrida”, afirmou Capobianco durante a coletiva na semana passada. Uma suspeita, diz, é que esteja ocorrendo o chamado ‘vazamento’. “Quando você é impedido de fazer um desmatamento em uma determinada área, você faz isso em outra área para ampliar seu negócio em outra região”, explicou. Ou seja, diante da maior dificuldade na Amazônia, onde a fiscalização está mais ativa, desmatadores poderiam estar migrando para o Cerrado.
“Isso é um dado que está sendo discutido e vamos verificar para ver se há alguma correlação. Mas em princípio, o maior fator é que de fato há uma exigência legal menor do ponto de vista da conservação”, complementou Capobianco.
E aí como é que faz? A pergunta tem perturbado os especialistas. Por um lado, a lei permite que 80% do Cerrado desapareça dentro de propriedades rurais. Por outro, há sinais de que os órgãos estaduais estão facilitando esse processo e dando licenças a rodo – às vezes sem seguir todos os trâmites.
Capobianco lembrou, por exemplo, que quando o pedido de supressão da vegetação é maior de mil hectares, precisa ter não só a autorização, mas também passar por uma avaliação de impacto ambiental. Se não tem isso, ele é ilegal. “Embora no Cerrado você tenha uma oportunidade, digamos assim, de desmatamento maior, em função de uma Reserva Legal menor obrigatória, na realidade acima de mil hectares precisa fazer o licenciamento ambiental e aparentemente isso não está sendo feito”, disse o secretário.
Uma das medidas que estão sendo tomadas é de embargar propriedades, de modo que elas não consigam crédito agrícola. Mas mesmo que o governo consiga atuar para conter essas irregularidades, e quando estiver tudo dentro dos conformes? O Cerrado vai para o sacrifício em benefício do agronegócio? Em detrimento da salvação da Amazônia?
O secretário extraordinário de Controle do Desmatamento do ministério, André Lima, falou sobre isso nessa entrevista para a Agência Pública. Assim como existe um plano para o combate ao desmatamento na Amazônia, o PPCDAm – relançado com aprimorações na semana passada –, a ideia é ter também um PPCerrado até setembro.
“A gente tem visto no Cerrado que o desmatamento está subindo muito e em boa parte é de corte autorizado dentro do CAR (Cadastro Ambiental Rural). O bioma deve ter em breve também um plano de combate ao desmatamento”, afirmou Lima.
“Então a gente precisa começar a dimensionar o que tem recebido autorização. Isso precisa virar um assunto, isso precisa virar até um problema. Porque não é suficiente dizer: ‘bom, o desmatamento no Cerrado está aumentando, mas ele é legal, então não vou fazer mais nada e tudo bem’. Mas se a lei autoriza, o que eu vou dizer? A gente precisa entrar numa fase de sofisticar as ações de fiscalização e monitoramento, separar o que é legal do ilegal mesmo, até para entender que tem muita coisa que supostamente é legal, mas não é”, continuou.
Segundo ele, será preciso pensar, por exemplo, na criação de unidades de conservação, mas também em alternativas econômicas. No caso da Amazônia, a ideia é trazer incentivos para valorizar a floresta em pé, de modo a oferecer um caminho mais lucrativo do que com ela derrubada. Mas para o Cerrado, em que o agronegócio mecanizado, gigantesco, está lucrando horrores com soja, milho e algodão no Matopiba, o que vai ser mais vantajoso? É a pergunta que ainda precisa ser respondida.