“Bioma-coração”, o Cerrado, localizado na parte central do Brasil, tem mais do que uma posição geográfica estratégica: é primordial no bombeio e distribuição de água que dá vida às principais bacias hidrográficas nacionais e sul-americanas. Esse berço de nascentes oferece recurso hídrico para ao menos 25 milhões de pessoas que vivem na região e outros muitos milhões que são atendidos subsidiariamente.
Mas o recorrente aumento do desmatamento — que elevou o ecossistema nos últimos anos aos piores percentuais de conversão da vegetação nativa para outros fins, com perda média de 10 mil quilômetros quadrados anuais — coloca todo esse potencial hídrico em rota de crise.
Artigo de pesquisa publicado na Global Change Biology, que quantificou os impactos das extensas transições de uso de solo sobre a evapotranspiração e a temperatura da superfície terrestre, aponta que o Cerrado já está 10% mais seco e 1º C mais quente, na comparação com a linha de base histórica de vegetação nativa.
Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) demonstram que dos dois milhões de quilômetros quadrados que congregam o bioma, quase 51% já foram convertidos. Enquanto em fevereiro de 2024 houve redução de quase 30% no desmatamento da Amazônia, na comparação com o mesmo período de 2023, no Cerrado houve aumento de 18,5%, o que é bastante preocupante, segundo o coordenador do Programa de Monitoramento da Amazônia e demais Biomas do Inpe, Claudio Almeida.
— Isso mostra que a gente tem muito para avançar, tem muito que conseguir melhorar essa questão do controle de desmatamento na área do Cerrado — afirma o coordenador do Inpe.
Esse ecossistema, que domina quase um quarto do território nacional, tem apenas 20% de sua área legalmente protegida, percentual muito inferior ao da Amazônia, por exemplo, onde em 50% da área não se pode mexer. E ao devastar a vegetação nativa, não há como dissociar os efeitos consequentes nas fontes hídricas.
— Alguns pesquisadores mostram que já existe uma redução no volume de água dos rios que saem do Cerrado. Esses rios estão diminuindo sua capacidade por conta do desmatamento. Então você começa a impactar seriamente a produção de água, impactar a agricultura, a pecuária, o abastecimento humano, geração de energia. Tudo isso depende dessa água que vem do Cerrado — expõe o coordenador do Inpe.
Com pequenas porções no leste da Bolívia e nordeste do Paraguai, no Brasil o bioma esparrama-se no Planalto central e consegue congregar estados de todas as regiões: Centro-Oeste (DF, GO, MT e MS), Norte (TO, RO, PA, e enclaves do AM, RR e AM), Nordeste (BA, CE, MA e PI), Sudeste (SP e MG) e no Sul (PR).
Duas importantes propostas caminham no Senado na direção da conservação. A primeira é o Projeto de Lei (PL) 5.462/2019, do senador Jaques Wagner (PT-BA), que propõe uma política de desenvolvimento sustentável do bioma, a partir de ações de proteção e uso dos recursos ambientes.
A proposição, que aguarda análise na Comissão de Desenvolvimento Regional (CDR) do Senado, trata da conservação, proteção, regeneração, utilização e proteção da vegetação nativa e da Política de Desenvolvimento Sustentável do Bioma Cerrado e dos ecossistemas, da flora e da fauna associados.
“Trata-se, sobretudo, de lançar os olhos sobre o futuro, e contribuirmos para que, por essa via, sejam reduzidos os danos já causados ao bioma, promovida a sua preservação e recuperação e, com isso, mitigado o grave risco que se avizinha no sentido de uma crise hídrica sem precedentes”, justifica o senador Jaques Wagner.
Para o autor da proposta, proteger o Cerrado “é proteger o Brasil, a América Latina e o mundo de uma catástrofe ambiental irreversível, que não apenas impedirá que a própria agricultura e pecuária continuem produzindo riquezas para o Centro-Oeste e o Brasil, por ausência de seu recurso fundamental — a água — como que a própria sobrevivência de milhões de brasileiros seja preservada”.
Representante de Goiás, o senador Jorge Kajuru (PSB-GO) afirma que o bioma até hoje não teve reconhecida a devida importância por parte do poder público e da própria sociedade. O parlamentar diz ser necessário achar um equilíbrio entre a agropecuária e a preservação ambiental, a partir de modelos de plantio e pecuária que sejam menos extensivos e respeitem os ciclos naturais da terra.
— Isso se deu pelo fato de as características do nosso bioma não serem tão explícitas a olho nu como é o caso do bioma amazônico. Com isso, as regras de preservação não foram tão rígidas como em outras regiões do país. Hoje, vivenciamos uma situação complexa: no Cerrado encontramos grande parte das plantações de commodities que são importantes para o desenvolvimento do nosso país e, também, para alimentação da população. Porém, a devastação desacerbada pode acabar tornando nossas terras inférteis — afirma Kajuru.
Outra matéria em análise é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 33/2023, que insere o Cerrado na lista dos biomas a serem protegidos como patrimônio nacional, honraria já concedida à Amazônia, à Mata Atlântica e ao Pantanal. Para o senador Kajuru, essa proposição, que tem como primeiro signatário o senador Paulo Paim (PT-RS), dá a devida importância ao bioma.
— Isso vai fazer com que o Poder Executivo e a própria população tenham outros olhos para a região que o abarca. Como patrimônio nacional, as boas práticas desenvolvidas para recuperação e preservação do Cerrado poderão acessar outros fundos de financiamento e abrir caminho para a criação de novas legislações infralegais que podem gerar maior proteção ao bioma — opina o senador.
O Cerrado é responsável pelos recursos hídricos superficiais de 8 das 12 grandes regiões hidrográficas brasileiras. Destacam-se nessa lista as regiões das bacias do Parnaíba, São Francisco, Tocantins/Araguaia, Paraná e Paraguai, onde também se encontram muitas das principais hidrelétricas brasileiras.
Apesar de o Cerrado ser considerado uma grande caixa d’água, onde estão localizados inclusive três grandes aquíferos – Guarani, Bambuí e Urucuia — não se pode apenar ir tirando água da torneira, sem qualquer retorno, porque senão “essa grande caixa vai secar”, alerta o professor da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) e membro do Instituto Trópico Subúmido, Agostinho Carneiro Campos.
— Esses aquíferos não conseguem armazenar tanta água por conta da estiagem, que de setembro até novembro é muito severa. Também, quando se desmata próximo às nascentes, a água não consegue penetrar no solo. Ainda, a compactação do solo, para abrir as rodovias, para a expansão dos centros urbanos, também vai inibir que essas áreas sejam infiltradas e alimentem os aquíferos. Esse é um grande problema que nós temos — afirma o professor.
Campos salienta que, quando há desmatamento próximo, ou até dentro de uma nascente, o solo fica exposto, passa a receber radiação solar muito maior, o que faz com que a evaporação aconteça muito mais rápido, abaixando o lençol freático, “o que compromete todo o processo da nascente”, dando margens a uma consequente crise hídrica.
— Se nós continuarmos tendo essa atitude, achando que a natureza vai sempre nos ajudar, que há sempre água em abundância, nós estamos muito equivocados. Nós precisamos hoje, como medida bem mais urgente, proteger essas nascentes, fazer uma recomposição florística. Muitas nascentes não têm nenhuma cobertura vegetal. Então, se continuarmos assim, nós vamos ter uma crise muito maior até o ano 2050 — completa Campos.
O potencial de proteção de vegetação nativa é muito superior ao que se imagina. Estudos já demonstram que as raízes das árvores típicas do Cerrado são responsáveis por transportar água das chuvas para uma boa profundidade. Em épocas de escassez, essas “florestas invertidas” passam a liberar essa água para o subsolo ou para os rios.
No Distrito Federal, essa compreensão levou à criação, ainda em 1968, da Estação Ecológica de Águas Emendadas, uma área de proteção integral, onde não é permitida a ocupação humana. Da preservação do Cerrado depende o fornecimento de água à população do Distrito Federal. Mas não só. As Águas Emendadas têm esse nome porque contribuem para a formação de duas das maiores bacias hidrográficas da América do Sul: a Platina, ao sul, e a Amazônica, ao norte.
Coordenadora da rede colaborativa MapBiomas Cerrado e diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Ane Alencar afirma que a primeira coisa a ser feita é “entender o tamanho do problema”, ao destacar que não há sequer conhecimento da exata outorga de água em todo o país.
— É preciso fazer esse levantamento das outorgas, daquilo que está sendo usado de água no Cerrado, para que a gente possa pensar numa política pública de restrição, de governança mesmo desse uso da água no bioma, para saber como agir e mitigar esse problema — expõe Ane.
Além da redução do volume hídrico, outro grande problema assombra o Cerrado: a contaminação das águas pelo considerável volume de agrotóxicos utilizados na produção, especialmente de grãos. Somente na safra 2020/2021, a área do bioma respondeu por 52% do plantio de soja no país.
— Nós temos ainda aquela ideia que temos água em abundância, mas dessa água que nós temos, quase toda está poluída, pelos esgotos que são lançados nos mananciais sem tratamento ou pela poluição dos agrotóxicos que são utilizados na agricultura, e que nos períodos de chuva são carregados para as nascentes. Por isso que é muito cara hoje a água tratada — completa o professor Agostinho Campos.
Dados colhidos pela Fundação Oswaldo Cruz no Centro-Oeste e na região do Matopiba (Maranhão, Tocantis, Piauí e Bahia) para a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado apontaram a presença de agrotóxico na água nos sete estados pesquisados, entre eles glifosato e atrazina, dois dos pesticidas mais utilizados no Brasil. O documento “Vivendo em territórios contaminados: um dossiê sobre agrotóxicos nas águas do Cerrado” demonstrou a presença de 13 substâncias, das quais cinco não constavam sequer em portaria do governo federal que regulamenta os parâmetros permitidos.
O desmatamento no Cerrado teve grande alavancagem no século 18, com a ocupação da parte mais central do país, sempre de maneira irregular e sem qualquer planejamento adequado. Atualmente, uma porção considerável do bioma é tomada pelo agronegócio.
O coordenador do Inpe Claudio Almeida salienta que, diferentemente da Amazônia, no Cerrado, 73,2% do bioma estão em cima de áreas com Cadastro Ambiental Rural (CAR).
— São áreas que você sabe quem é o proprietário e, segundo o Ibama, grande parte dessas áreas já são autorizadas, são desmatamentos que estão acontecendo e eles têm autorização para desmatar, não é ilegal, é um desmatamento que foi autorizado. A questão agora é avaliar até onde vale a pena continuar esse processo. Será que não é hora de rediscutir quanto o Cerrado suporta mais de desmatamento? — questiona o coordenador do Inpe.
Uma das maiores especialistas em Cerrado, a professora e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB) Mercedes Bustamante afirma que é preciso urgência nas ações para estancar esse desmatamento que se acentuou.
— Muitas vezes há a percepção de que quando você aumenta a proteção de um bioma, como é o caso da Amazônia, você desloca essa pressão do desmatamento para outras regiões. Então é preciso entender se esse fenômeno que a gente chama de vazamento está efetivamente acontecendo, e quais são os vetores que estão ocasionando esse aumento do desmatamento no Cerrado — diz Mercedes.
Para a professora, é preciso implementar rapidamente o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento – PPCerrado, que foi retomado pelo governo federal em 2023, depois de ter sido abandonado por alguns anos. Mercedes também destaca que a própria questão fundiária no Cerrado demanda um envolvimento muito mais próximo do setor privado, já que o desmatamento acontece principalmente em propriedades rurais.
— Apesar de o Código Florestal até permitir uma supressão de vegetação autorizada pela lei mais alta do que na Amazônia, muitas vezes isso ocorre sem a devida autorização, sem a autorização do órgão ambiental. Então, há todo esse aspecto de entender o que está motivando o processo de desmatamento, mas ao mesmo tempo de convencer os principais atores envolvidos, de que essa é uma ação que prejudica o próprio setor. É preciso trazer um pouco de racionalidade nesse debate, porque a própria sobrevivência do setor agrícola depende de condições de clima adequadas que vem sendo desconfiguradas exatamente pelo processo de desmatamento — afirma a professora da UnB.
Ainda que a maior concentração de desmatamento tenha holofotes hoje na região do Matopiba, é possível ver uma retomada da derrubada naquelas áreas de ocupação mais antigas, segundo Mercedes. A professora alerta que a se continuar a rapidez dessa destruição, não haverá sequer um ponto de retorno, “porque o desmatamento acabará com o Cerrado primeiro”.
Para Ane Alencar, o governo federal deve trabalhar junto aos governos estaduais para identificar o que no desmatamento é legal ou ilegal, entender se acontecem dentro de imóveis rurais e se esses são realmente legalizados ou não. Segundo a coordenadora do MapBiomas, é preciso mais averiguação/fiscalização no processo de licenciamento e mais incentivos para a melhoria e eficiência da produção agropecuária, como forma de desestimular o desmatamento em novas áreas.
— Se as políticas privadas começarem a determinar que não se compra produção de áreas novas desmatadas no Cerrado, vai desestimular o desmatamento em novas áreas no Cerrado. Então, o setor privado tem um papel muito forte e importante também no desestímulo — completa Ane.
Segundo maior bioma da América do Sul e uma das savanas de maior diversidade biológica no mundo, o Cerrado, assim como a Mata Atlântica, é um dos 40 hotspots para conservação da biodiversidade no planeta. Isso significa ser uma área com grande riqueza de espécies, mas que corre extremo perigo pela perda de sua cobertura vegetal nativa.
— O Cerrado é um bioma com uma riqueza biológica muito grande, com um grande número de espécies endêmicas, mas que vem perdendo área muito rapidamente. Então isso o coloca como uma prioridade para a conservação. Esse não é um selo para a gente dizer, ótimo, nós somos um hotspot. O hotspot deve ser prioridade para a conservação, exatamente, porque nós não estamos conseguindo conservar adequadamente o bioma — afirma Mercedes.
O Cerrado é muito mais do que esparsas árvores contorcidas despidas de muita folhagem. No bioma, que tem uma das aquarelas mais bonitas da flora brasileira — como as numerosas espécies de ipês de flores vibrantes — a vegetação está presente em áreas abertas, que são os campos, em savanas, que misturam campo, arbustos e árvores, e em formações florestais fechadas.
Levantamento oficial do Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, responsável pelo registro nacional das espécies, aponta que há cerca de 14 mil espécies de flora e funga (fungos) catalogadas no bioma, sendo pouco mais da metade somente endêmicas do Brasil.
— Essa beleza da complexidade do Cerrado representa também um desafio para a sua conservação. Porque as estratégias que a gente tem para a conservação de áreas de campo não podem ser as mesmas estratégias que a gente tem para a conservação de áreas de floresta ou de áreas de savana — explica a professora da UnB.
Mercedes chama atenção para os avanços no conhecimento do bioma, mas considera que isso ainda é pouco assimilado, tanto por tomadores de decisão, pelas lideranças políticas, como pela população de uma forma mais ampla.
— Acho que há necessidade efetivamente de transformar esse conhecimento acumulado sobre o Cerrado, de uma forma mais acessível, para que ele possa ser realmente incorporado pela população, que ela entenda quando a gente fala da importância da preservação do bioma. Mas a gente não pode esperar que essa consciência se amplie. Por isso que eu acho que o papel das lideranças políticas hoje é muito importante. A gente precisa ter um foco realmente em lideranças políticas que tenham a capacidade de ações concretas — enfatiza a pesquisadora.
Ainda existem áreas para aumentar a proteção legal da vegetação nativa do Cerrado. Não é muito, segundo a coordenadora do MapBiomas Ane Alencar: são pouco mais de dois milhões de hectares em florestas públicas não-destinadas.
— Tão importante quanto é que existem muitas comunidades tradicionais no bioma, as mais diversas possíveis, como vazanteiros, comunidade de fundo e de fecho de pasto. Muitos são quilombolas, que vivem nessas áreas mais vegetadas. É importante reconhecer os territórios que são historicamente utilizados por essas pessoas, uma população importante e invisibilizada infelizmente — diz Ane.
Trabalho nesse sentido é desenvolvido por meio do projeto “Tô no mapa”, encabeçado pelo Ipam, pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), pela Rede Cerrado e Instituto Cerrados, para identificar essas comunidades — geralmente grandes protetoras da biodiversidade — que, em ação com o Ministério Público Federal, busca o reconhecimento dessas áreas como territórios coletivos e, consequentemente, sua preservação.
É também com comunidades tradicionais, assentamentos e unidades escolares que o projeto Valorização de Plantas Alimentícias do Pantanal e Cerrado, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), dissemina o potencial dessas plantas nativas. O trabalho é associado à cultura local e busca proporcionar melhoria da qualidade de vida das pessoas e aumento de renda. São disseminados conhecimentos sobre conservação, boas práticas de higiene e de coleta, armazenamento, processamento e comercialização.
Criado em 2006, o trabalho veio resgatar plantas do Cerrado, muitas das quais extremamente ricas em vitaminas, minerais e fibras, que eram importantes no passado, mas que estavam sendo abandonadas.
— Esse é um processo que ocorre no mundo inteiro, não ocorre somente no Brasil, no Cerrado, no Pantanal. Com o processo de colonização, muitos dos valores europeus acabaram sendo impostos para a sociedade em geral. Então, as pessoas queriam consumir mais o que a Corte consumia e com o tempo as pessoas acabaram consumindo o que foi adotado pelos mercados. Essas plantas silvestres, que eram acessadas apenas pelos povos indígenas, aqui no caso, tanto do Cerrado, como do Pantanal, passaram a ter uso mais restrito, mais local. E essas plantas passaram a não ser conhecidas pela sociedade em geral — explica a professora, pesquisadora e orientadora do projeto Ieda Bortolotto.
A iniciativa trouxe resultados. Frutos como o cumbaru ou baru, que sempre foi parte da flora do Cerrado, começaram a ter inserção no mercado e ganharam espaço até mesmo na exportação. A castanha do baru tem alto valor nutricional e pode ser comercializada também como farinha, óleo ou outros produtos já prontos, como bolo e geleia. Multidisciplinar, o projeto chegou às escolas e aos hotéis, porque sabe-se que a difusão de conhecimento resulta em maior valorização e conservação.
— Nós trabalhamos muito com escolas rurais, que são filhos de pequenos agricultores, que têm por prática fazer mudas de plantas. Muitas vezes, eles levam essas novidades para suas casas. Assim como assentamentos, já foram mais de 20, entre eles o Andalucia, no município de Anastácio (MS), que se tornou um grande produtor da castanha de baru e de farinha de jatobá.
A Comissão de Meio Ambiente (CMA) aprovou recentemente projeto que cria a política nacional para o manejo sustentável, plantio, extração, consumo, comercialização e transformação do pequi e também dos demais frutos nativos do Cerrado. O PL 1.970/2019 segue para a Comissão de Agricultura (CRA). O projeto foi relatado na CMA pelo senador Kajuru, que associa a criação de uma política específica para o manejo do pequi e outras frutas à preservação do Cerrado. O parlamentar também aposta no modelo agroextrativista, como forma de exploração da terra de forma não predatória, e na bioindústria.
— O Cerrado é um bioma muito diverso e temos cerca de 30 espécies frutíferas de interesse econômico que podem gerar grandes riquezas para nosso país. O agroextrativismo somado à bioindústria permitiria o desenvolvimento de interessantes produtos como alimentos, cosméticos e remédios que poderiam ter alcance nacional e até mesmo internacional — diz o senador.
A flora e a fauna de um bioma estão sempre intrinsicamente ligadas. Se a vegetação padece, os resultados não serão os melhores para os animais, que acabam por sofrer com a drástica diminuição do habitat. Presente no Cerrado de Mato Grosso do Sul desde 2015, o Instituto de Conservação de Animais Silvestres (Icas) acompanha de perto a influência do desmatamento, dos atropelamentos e da intoxicação dos animais por agrotóxicos.
— A primeira coisa que a gente nota é a questão da fragmentação. No Mato Grosso do Sul, só há 16% da cobertura nativa do cerrado remanescente. E ela está extremamente fragmentada, extremamente pulverizada. Então, todos esses remanescentes de Cerrado tendem a ser bem pequenos e estão envoltos por uma matriz, por uma paisagem que é principalmente de cultivo e de pecuária. Os animais silvestres ficam extremamente isolados. Isso é um baita impacto nessa população — diz a bióloga e pesquisadora do Icas, Nina Attias.
Animais como tatu-canastra, que variam de 30 a 60 quilos, precisam, em média, de 25 quilômetros de área de vida, de uso praticamente exclusivo.
— O que quer dizer que, provavelmente, os tatus-canastra no Cerrado estão vivendo isolados em um fragmento. Quer dizer que para eles se encontrarem e reproduzirem, eles vão precisar cruzar toda essa paisagem de agricultura e de pecuária, o que os deixa muito vulneráveis a encontro com humanos e estruturas humanas — expõe a pesquisadora.
Assim como tamanduás e lobinhos, os tatus são alguns dos animais mais atropelados, por tentarem encontrar uns aos outros e não morrerem sozinhos nos seus fragmentos. Além do atropelamento, muitos desses animais são estigmatizados e sofrem retaliações por parte dos seres humanos.
O Icas desenvolve o Projeto Tatu-canastra, que trabalha com a conservação da biodiversidade por meio a coexistência humano-fauna, do manejo da paisagem. Uma das propostas de maior sucesso é a do projeto Canastras e Colmeias, que definiu com apicultores métodos para que não houvesse ataque às caixas de abelhas pelos tatus, que acabavam sendo mortos por retaliação. Agora, foi criado até um selo de certificação do “mel amigo do tatu-canastra”, o que possibilita a venda do produto por um preço mais elevado.
Já por meio do Projeto Bandeiras & Rodovias, pesquisadores conseguiram mapear os efeitos das rodovias na vida dos tamanduás-bandeira. Durante 12 meses, vários animais foram monitorados no Mato Grosso do Sul. Cerca de 80% dos animais capturados nas proximidades das rodovias cruzaram as pistas em algum momento do estudo, principalmente no período noturno.
Os resultados mostraram que nenhuma dessas rodovias têm mecanismos eficazes para inibição de travessia, como cercamentos, passagens inferiores e superiores, bueiros adaptados, viadutos e túneis para a fauna. Ainda, o levantamento apontou que 17 tamanduás-bandeiras são mortos por colisões com veículos a cada 100 quilômetros nas rodovias.
As estradas pavimentadas tendem a ter mais atropelamento, mas as não-pavimentadas também causam impactos letais na biodiversidade animal. De 2017 a 2020, o Icas registrou 12,4 mil animais atingidos por colisão veicular. Mas para o Instituto, o número é subestimado e a taxa de mortalidade de animais de médio e grande porte deve superar 5 mil por ano.
Uma forma simples de reduzir essas colisões é evitar dirigir nos horários de maior risco, principalmente à noite, quando os animais estão mais ativos e há menos visibilidade. É preciso ainda atenção e respeito à sinalização, geralmente posta nos pontos onde há mais ocorrência de atropelamentos. No MS, já está sendo implementado um guia de orientações para redução de coalisão com a fauna, repassado principalmente a quem vai tirar a Carteira Nacional de Habilitação (CNH).
— Além disso, hoje em dia a gente está vendo também que tem a questão dos agrotóxicos. Tem alguns casos já de tamanduás-bandeira e de antas que vieram a óbito por contaminação por agrotóxico. São animais que estavam extremamente saudáveis, eram animais que a gente monitorava, e eles vieram a óbito repentinamente, e de forma muito pouco convencional. Fizemos exames toxicológicos que comprovaram que esses animais tinham altas taxas de agrotóxicos no sangue — relata Nina.
Dados do Sistema de Avaliação do Risco de Extinção da Biodiversidade (Salve), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), apontam que das 4.866 espécies avaliadas no Cerrado (todos os vertebrados e alguns invertebrados), 303 estão em categorias de ameaça.
Entre as 63 espécies em “criticamente em perigo” estão o pangola, macaco-preto, rato-candango, rolinha-do-planalto, pato-mergulhão, aracuã, cascudo, bagrinho-de-caverna. “Em perigo” aparecem 101, como o macaco buriqui, sagui-caveirinha, maçarico-rasteirinho, tiê-bicudo, aranha-caranguejeira, tartaruga de escamas e lambari. Por fim, mais 139 completam a lista na categoria “vulnerável”, que reúne espécies como bugio, macaco-aranha, lobo-guará, boto-do-araguaia, papagaio-de-peito-roxo, onça pintada, anta, pica-pau-do-parnaíba e pirapitinga.
Os recursos para o Meio Ambiente ainda são escassos. Dados do Portal da Transparência apontam que o orçamento federal para a pasta ministerial não representou nem 1% do percentual dos gastos públicos nos últimos cinco anos.
— O orçamento do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e dos órgãos vinculados, como o Ibama e o ICMBio, sofreu redução considerável nos últimos anos. Felizmente, há uma tendência de recomposição desse orçamento, ainda que muito aquém do necessário. Para se ter uma ideia, a despesa executada em 2019, pelo MMA, foi de aproximadamente R$ 2,8 bilhões. Em 2023, o valor alcançou R$ 3,6 bilhões, um aumento de mais de 40% — diz o consultor legislativo em Meio Ambiente do Senado Matheus Dalloz.
Para este o ano de 2024, estão previstos R$ 14,64 bilhões, sendo que R$ 10,45 bilhões são referentes a recursos do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima. Dados do Siga Brasil apontam que para a função de gestão ambiental, que engloba também outros ministérios, foram autorizados, de 2022 a 2024, R$ 25,1 bilhões, dos quais R$ 15,1 bilhões são para este ano, contemplando os já referidos R$ 10,45 bilhões.
— O orçamento do MMA representa o montante que está sob responsabilidade do ministério. Já a função gestão ambiental representa o quanto está sendo gasto nesta determinada área da despesa, independentemente de quem a está executando — expõe o consultor legislativo em orçamento, Sergio Machado.
São imensos os desafios para que a maior biodiversidade do mundo não padeça e, consequentemente, toda a espécie humana que dela depende. O premiado professor e historiador da Universidade de Campinas (Unicamp) Luiz Marques, que publicou obras socioambientais, entre as quais Capitalismo e colapso ambiental (2015) e O decênio decisivo. Propostas para uma política de sobrevivência (2023), afirma que “nós sabemos o que devemos fazer”.
— Nós temos que zerar o desmatamento. Nós temos que diminuir drasticamente o consumo de combustíveis fósseis. Nós temos que diminuir drasticamente a produção de resíduos. É isso que nós temos que fazer. Mas não há nenhuma chance de alcançar se você não atacar a causa. E, para isso, é preciso ter uma estratégia política de convencimento da sociedade. A meta deste governo é reduzir o desmatamento. E essa meta só pode ser alcançada se você proibir o desmatamento de quem desmata. Há uma diminuição sensível e meritória do desmatamento da Amazônia, mas houve um grande aumento do desmatamento do Cerrado. Sem Amazônia e sem Cerrado não existe sociedade brasileira. Temos que ter força política, coragem, para coibir, para reprimir — afirma Marques.
Para o historiador, é preciso muito mais do que debates e tratados. Ele afirma que todas as três convenções-quadro das Nações Unidas firmadas — a Convenção sobre Mudanças Climáticas, a Convenção sobre Diversidade Biológica e a Convenção de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca — “têm um saldo de total fracasso”.
— A palavra “fracasso” às vezes parece um exagero. Mas não é um exagero. Se você tem um plano, uma intenção, você está a uma certa distância do seu objetivo. E você não apenas não alcança o seu objetivo, mas você retrocede em relação à posição que você estava, quando você decidiu chegar naquele objetivo, que é o caso exatamente das três convenções, você não pode classificar isso como um não fracasso. Não é um fracasso relativo, porque isso seria se tivesse avançado um pouquinho, mas não chegado na meta que você propunha chegar. Mas não, retrocedeu — avalia o professor da Unicamp.
Em 2023 as agências de clima apontaram que o planeta registrou as maiores temperaturas nos últimos 125 anos. Para o professor, “não há mais como continuar sendo destrutivo e acreditar que essa destruição não impacta, que não significa uma ameaça existencial”.
— Nos últimos 125 mil anos, quando a espécie humana estava engatinhando, que estava acabando de sair da África, nós éramos alguns poucos milhares, hoje nós somos 8 bilhões de pessoas e nós temos uma demanda de energia, uma demanda de matéria-prima, um impacto sobre o sistema Terra gigantesco. Então, nós temos que desacelerar, mas não estão entendendo isso. O único critério de sucesso de uma sociedade é a diminuição do seu impacto sobre o sistema Terra — alerta Marques.