Recife
Chantecler, Dunga, 55 anos, e a última vitrola de ficha de gafieira do velho cabaré

Recife ainda guarda em certos becos a memória de tempos menos higiênicos, porém mais sinceros. E ninguém melhor para evocar essa era do que Chantecler, frequentador de velhos cabarés, criatura mitológica de terno amassado e sapato de duas cores, sobrevivente de carnavais em preto-e-branco e noites com cheiro de gardênia e batom barato.
Pois foi ele quem teve a brilhante ideia de reabrir, por uma noite apenas, as portas místicas da Casa da Luz Vermelha, que há décadas só figurava nas conversas sussurradas de velhos tios e políticos semi-aposentados. A reabertura se justificava por uma efeméride rara: os 55 anos de Dunga, – não o da Seleção, que fique claro, mas o Dunga do Bar do Gato, o Dunga que, com cinquenta e cinco anos bem vividos, já deixou boquiabertas garotas de Boa Viagem e Piedade.
A festa, na quinta-feira, 17, foi montada como nos velhos tempos, com requintes de mofo e nostalgia. A data foi meticulosamente estudada para evitar comentários de heresia, numa referência ao dia seguinte, à sexta da Paixão. As vitrolas de ficha, depois de anos silenciadas, chiaram como pulmões de ex-fumante antes de deixarem vazar boleros, forrós e sambas-canções.
Os convivas, todos acima dos 65, surgiram trajados como para uma cerimônia secreta da maçonaria, com ternos largos, perfumes adocicados, sapatos com a sola já contando os dias. E elas — as moças da noite, agora senhoras da tarde — retornaram à cena não como profissionais do sexo, mas como dançarinas honoríficas, estrelas de um tempo que se recusava a morrer em paz.
Não houve promiscuidade, apenas saudade. Mesmo porque, agora aos 55, Dunga é tido como um respeitado senhor casado. Os passos de dança foram lentos, mas respeitosos, como se cada música fosse uma despedida. A cerveja era quente, o uísque era nacional, e a conversa corria macia, cheia de nomes que já viraram ruas ou pontes mal cuidadas.
Chantecler, ao centro da mesa, brindava com o copo trincado e os olhos marejados — não de emoção, mas de catarata. “É preciso celebrar enquanto ainda se tem coluna pra ficar em pé”, disse, antes de tentar um passo de gafieira que por pouco não vira atendimento do SAMU.
Ao fim da noite, Dunga apagou as velinhas com um sopro curto e resignado. Não pediu desejos. Sabia que a única coisa que ainda valia a pena era exatamente aquilo – um momento suspenso no tempo, entre o chiado da vitrola e o perfume adocicado de uma memória em vestido justo.
A noite já ia alta quando apareceu Zé da Pomada, ex-vereador, ex-cantor de calypso e atual morador de um anexo improvisado atrás da sede do Clube dos Subtenentes. Chegou de bengala, mas com o espírito de quem ainda cogita cometer pequenos pecados.
— Eita, Casa da Luz… Se essas paredes falassem, o Tribunal de Contas vinha abaixo.
— Fique tranquilo, Zé, respondeu Chantecler com um meio sorriso. As paredes aqui são mais discretas que confessionário de padre progressista.
Dunga, no centro da atenção, era só risada. Usava uma camisa social bege, aberta até o terceiro botão, revelando uma corrente de ouro falsa e um peito que já teve músculos, hoje substituídos por memórias e colesterol.
— Cinco décadas mais cinco velinhas e ainda danço mais do que muito moleque de aplicativo,” dizia, enquanto rodopiava com Dona Marlene, que no passado atendia por “Neide do Saxofone” e hoje prefere ser chamada apenas de “artista aposentada.”
— Cuidado, Dunga, que o joelho não tem mais garantia,” gritou Seu Toinho, que observava da poltrona com um copo de Cuba Libre tremendo na mão.
— Se cair, levanto com elegância, rebateu Dunga. “O problema é a dignidade, que às vezes demora mais.”
A vitrola engasgava em “Besame Mucho” quando Bibi Marraia, lenda viva dos cabarés do Pina, entrou como uma entidade. Vestia um kaftan vermelho que parecia feito de cortina de teatro antigo e usava um penteado que desafiava as leis da física e do Ibama.
— Quem me chamou, meus amores?, perguntou, dramática.
— A saudade, respondeu Zé da Pomada, levantando-se para beijar-lhe a mão.
— E o débito,” cochichou Chantecler, “mas isso a gente resolve em outro plano espiritual.
A conversa fluía como uísque adulterado: quente, ardido e honesto. Falavam de ex-amores, de carnavais que não acabavam em bala de borracha, de um Recife que só sobrevive nos discursos de boteco e nas letras de frevo canhestro.
— Lembram daquela vez em que o bispo apareceu aqui achando que era retiro espiritual?
— Lembro, sim, disse Marlene, rindo. “Saiu convertido, mas pra outras práticas.
A madrugada foi findando com passos lentos e sorrisos largos. Ninguém ali esperava mais do que isso – apenas o direito sagrado de envelhecer entre pares, num território onde a juventude era uma lembrança boa e não uma ameaça digital.
Chantecler, já com os olhos semi-cerrados de uísque ou ternura, resumiu a noite com sua filosofia de bar:
— A vida, meus caros, é uma vitrola de ficha, que toca bonito enquanto tem moeda. Depois, é só silêncio e o chiado da saudade.
Ao som de um último samba-de-breque e sob a bênção de Bibi Marraia, a Casa da Luz Vermelha fechou mais uma vez suas cortinas. Mas jura-se por aí que, se alguém souber a senha certa — e tiver a ficha certa — ainda pode ouvir ecos daquela festa.
Depois, como em toda boa lenda urbana, a Casa da Luz Vermelha voltou ao silêncio. Mas quem passa por lá em qualquer noite garante que, quem encostar o ouvido na porta, ainda escutará um bolero sussurrando baixinho: “Volta… vem viver outra vez ao meu lado…”
Parabéns, Dunga! A farra poderia ser antes, mas, por que cargas d’água, você resolveu ir a São Paulo sem avisar a velhos tios e amigos de cabelos prateados, que organizavam a homenagem?
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José Seabra é Diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras
