Pegadas na janela
Chão de giz é metáfora de paixão que transformou o chifre em uma canção
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Acabou o carnaval. Então, feliz 2025. Sem fantasias, o Brasil está de volta à normalidade. Eu também. À luta. Carregada de verdades inquestionáveis, mas impublicáveis, a cultura popular nordestina está dividida entre o sol, o sertão, a seca e a resistência. No Nordeste, as quatro maiores verdades são o cuscuz está pronto, vem por forró, dá-me um xero no cangote e lá vem o corno. As três primeiras são tão óbvias como a presença de um fole no arrasta-pé de São João. Já a do corno me foi contada por um cabra macho nascido em Bunda, pitoresca e rotunda cidade da Tailândia. Nordestino adotivo, ele é do tipo que acha preferível ser corno do que nunca ter chegado perto de uma gazela.
Considerando que só tem chifre quem não papa direito (do verbo comer), até que a máxima é de altíssima relevância. Considerandos à parte, segundo o machão do agreste, existe um antigo costume no Nordeste para pegar o Ricardão. Às vezes, Tonhão, mas sempre o enlameador de honra. Sem delongas cornucópias, diz o amigo obscuro que, quando o corno quer saber se foi traído, ele espalha pó de giz debaixo da janela do quarto do pagador. É bater e valer, pois, ao deixar a masmorra erótica alheia, o bonitão do trem fumegante, do tipo chaminé, marca o piso com as pegadas, mas não interrompe o dever do gastador.
Aí não tem jeito. O chifre está posto. Com esse artifício, pelo menos o corno não é o último a saber. Admito a gargalhada do leitor. Todavia, alerto para não zoar do vizinho. Ele é corno, mas é seu amigo. Além disso, sugiro não zoar nenhum de seus vizinhos e amigos suspeitos. Afinal, como diz a campanha rural da TV Globo, corno é agro, corno é tec, corno é top, corno é tu. E daí? Quem não é ou nunca foi? Não é demais lembrar que corno é assim mesmo: tudo que vê quer ler. É curioso até debaixo da cama.
Não gostei da brincadeira, mas foi o que consegui para iniciar o parágrafo cum um outro alerta: Não subestime seu chifre. Um dia você ainda vai precisar dele. Na verdade, todos nós. Falei en passant do santo que me confidenciou a história do giz, mas acho que devo contar seu milagre: ele é o autor do pó mágico e capaz de descobrir chifres na cabeça de pobres, ricos, covardes, machões e até de deputados e senadores. O cabra casou quatro vezes e levou chifre com as quatro esposas. Cansado do peso na cabeça, procurou um marceneiro na cidade vizinha e encomendou uma mulher de madeira. Foram apenas seis meses de felicidade. Quase morreu de desgosto ao descobrir que o cupim estava comendo sua deusa.
Pelo menos a história do giz debaixo da janela rendeu uma obra-prima musical carregada de metáforas. A descoberta não é minha. Não conheço a autoria, mas não posso escondê-la dos leitores de Notibras. O protagonista da história é o cantor e compositor paraibano Zé Ramalho, autor de Chão de giz. Aos 17 anos, estudante de medicina, ele se apaixonou perdidamente por uma mulher mais velha, muito rica e casada. Zé tinha medo do pó de giz, mas embarcou na aventura. O corno que se vire. Foi, foi e acabou fondo. Corria o risco da camisa de força, mas se deu bem com a camisa de vênus.
Ao perceber que a paixão poderia levar seu nome para a lama, a dondoca se evadiu antes de o caldo entornar. No fundo do poço, o autor desandou nas metáforas. A primeira foi o piso em suposta homenagem ao nome da amada (talvez, Giza). Grão vizir era o marido poderoso. Já o saquinho em que, amiúde (repetidas vezes), escondia os recortes de jornais com fotos da socialite virou o pano de guardar confetes. Ao optar por não ser mais um cigarro na boca da mulher, o moleque dá o grito de liberdade e diz: “No mais estou indo embora…” Bom ou ruim, aperreado ou arrochado, pelo menos o romance proibido de Zé Ramalho com a ricaça me rendeu uma frase capaz de encerrar esta narrativa com alguma graça: Atrás de um corno manso há sempre uma mulher feliz. Oxente! Arre-égua! Sem fuleiragem, meu rei, essa história de corno não é comigo. Lá ele.
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Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras