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Cheio de ilusões, ‘mito’ deixa país sem vacinas e ações

O melhor país ou cidade para vivermos é o que escolhemos para morar. Os amores e os amigos a gente escolhe com a alma e com o coração. Já o presidente, governador, prefeito e representantes no Congresso Nacional escolhemos de acordo com o que entendemos por conhecimento ou pelo modismo do feeling. Sofremos dias, semanas e meses quando erram o coração e a alma. De difícil solução são as falhas do tal do feeling. A recuperação leva anos, décadas, às vezes uma geração. Vivemos isso nesses últimos cinco ou dez anos. Certos de que votavam com o coração, milhões de brasileiros elegeram um presidente e uma presidenta conscientes de que ajudariam a derrubar as derradeiras barreiras contra a consolidação da democracia e veriam a definitiva inclusão do Brasil na lista de países ricos, sérios e respeitados.

Por razões que não se explicam, tudo deu certo até a página dois. Na terceira, já próximo da nota dez, os governos da esperança fizeram água, afundaram na ansiedade, na ganância, no despudor, no oportunismo e na desnecessidade de conseguir para si o que é de todos. Esqueceram que, como senhor da razão e escultor de ruínas, o tempo não perdoa e envelhece rapidamente os que jogam no lixo o comprometimento prometido. Outrora poderosos, os dirigentes do partido criado por trabalhadores esqueceram que, em determinado momento de suas quase quatro administrações, dividiram gastronomicamente o eleitorado. Ainda que sem ódio, força ou deboche, foi uma decisão extremada, deliberada e colegiada. Patrocinar essa divisão custou caro à direção da legenda, considerada religião entre os mais marrentos.

Na verdade, a divisão custou uma eleição. Representante do ódio àqueles que perderam, do nada apareceu um candidato que, como vendedor de ilusões, acabou presidente. Sem conhecimento, noção, respeito ao contraditório e, principalmente, sem freios, mas com apoio de alguns generais e muitos defensores do quanto pior melhor, surgiu um mito, eleito democraticamente e com maioria de votos daqueles que sobraram da divisão alimentícia. Os que não eram pão com mortadela viraram coxinha e hoje são bolsominions. Felizmente, só parte da sobra merece essa nova e pavorosa adjetivação. Digo parte porque, se ainda fosse a maioria, estaríamos fadados à recondução de um presidente de equívocos, bobagens, isolamentos e de divisões ainda mais grotescas.

Há 20 anos não morro de amores por candidatos à Presidência. Como jamais deixei de me manifestar nas urnas, em 2018 fui obrigado a digitar e confirmar o Não. Não posso ser hipócrita e esconder que também sofri com ideologias salvadoras. A diferença é que, como profissional de imprensa, não sofria ameaças nem xingamentos. Economicamente, o país tinha relativa fartura de recursos. Tanto que, paralelamente, havia excesso de sindicatos, ONGs, coletivos, empréstimos a fundo perdido e vaguinhas para companheiros com polpudos salários. Nada demais, considerando que os postos antes combatidos hoje são ocupados por oficiais fardados ou de pijamas.

Portanto, tudo é velho na nova política brasileira. A titica é a mesma. Mudaram as moscas. A militância de rua deu lugar ao ativismo de redes sociais. Bandeiras, paralisações e bonecos infláveis foram trocados pelo ventriloquismo. O discurso unificado foi substituído pela falácia ditada. Lulistas e dilmistas eram combatentes e tinham discursos próprios. Sem ideia alguma do que discutem ou propagam, os bolsonaristas, ao contrário, se limitam a repetir o que determina o raivoso líder. Às vezes, até conseguem ampliar os decibéis das lives presidenciais, mas permanecem limitados e cada vez mais apegados à arte de projetar a voz em bonecos. O tempo envelheceu o PT, Lula passou a ser carta fora do baralho e Bolsonaro se perdeu no emaranhado de equívocos.

Em 2022, o que farão os que, como eu, disseram Não nas últimas eleições? Restarão os ensinamentos do artista cubano Alexis Valdés (e não K. O’Meara), que, inspirado na pandemia da Covid-19, nos ensinou a agradecer pelo fato de estarmos vivos. Nos versos escritos em março do ano passado, Valdés afirmou que, tão logo passe a tempestade, abraçaremos o primeiro desconhecido e elogiaremos a sorte de manter um amigo. Se sobrevivermos ao naufrágio coletivo desse desumano vírus, entenderemos que nem sempre as estratégias genocidas ou divisionárias são as melhores escolhas. Melhor do que tudo, teremos certeza de que não passa de hipocrisia a teórica tese do grupo político que está no poder querer se perpetuar com o discurso de defensor do povo.

Seus integrantes mantêm a narrativa contrária ao materialismo. Mais uma brincadeira da família bolsonarista, considerando o volume (nenhum) de projetos em favor da sociedade, a declaração de rendimentos e a última compra do senador Flávio Bolsonaro. Uma mansão de R$ 6 milhões realmente não se alinha a uma vida política de nada vezes nada em benefício do Brasil. Resta ao presidente, além de assumir suas responsabilidades, evitar o negacionismo, respeitar o “mimimi” de quem perdeu entes queridos, se render aos fatos e às evidências da falta de planejamento para conter a pandemia e tentar explicar a demora homicida na compra de vacinas. Recordes após recordes no número de mortes, até esta sexta, 5, o governo não conseguiu imunizar mais do que 3,5% da população. Números atualizados indicam que a contrapartida é assustadora: 10.793.732 infectados e 260.970 mortos

*Wenceslau Araújo é jornalista

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