Politicamente e para a vida, os reflexos da pandemia são irreversíveis e desesperadores. As gerações que ocupam espaços no Brasil de hoje nunca viveram e jamais imaginaram viver um quadro sanitário tão deplorável e tão negado por quem mais deveria lhe dar importância: o presidente da República. E, como ele próprio já disse em outras ocasiões, não adianta chorar o leite derramado. Para quem acompanha o dia a dia da política com isenção e sem fanatismo, o pior é saber que, ocasionalmente, a liturgia do cargo e as circunstâncias adversas obrigam os líderes a ler o que não quer, notadamente quando é em solidariedade pública a um ser humano maravilhoso, mas merecedor de críticas contumazes desse mesmo líder simplesmente por ser diferente. Foi o caso do ator e humorista Paulo Gustavo, cujas opções pessoais desagradavam àqueles que não aceitam liberdades.
Apesar de indiscriminadamente aterrorizante, a Covid-19, que parece ter vindo para ficar, também tem suas positividades. Mostrou, por exemplo, que o vírus não tem preferências. Bobeou, ele atinge poderosos, pobres, brancos, afrodescendentes, políticos, apolíticos, religiosos, ateus e, principalmente, negacionistas que desdenham de sua letalidade. Ao longo desses 14 meses de descontrole da doença, também ficou provado que, venha de onde vier, o ser humano não consegue viver sem a graça e sem o humor, termos que significam alegria, felicidade, contentamento e, portanto, transforma e alivia. Melhor do que tudo, a potência do vírus sepultou definitivamente a tese de remédios milagrosos e sem eficácia para tentar controlá-lo. Ou seja, nem mesmo pólvora vencida ou bala de canhão desativado mata dona Covid.
Como disse Paulo Gustavo meses antes de morrer prematuramente, pelo menos a pandemia escancarou a certeza de que o amor e o afeto são vacinas existentes e comprovadamente eficazes contra o preconceito, a intolerância, a mentira, a tristeza e, principalmente, discursos desconexos, equivocados, absolutamente distantes da realidade e que, mesmo para os leigos, soam como bravata ou quixotada. O que está longe de ser presepada é a insistência com a cloroquina (principal estrela da CPI), a falta de imunizantes e os números da Covid. Até agora, a doença que, para alguns radicais, foi mesmo criada em laboratório da China, infectou 15 milhões de pessoas e tirou a vida de quase 415 mil brasileiros. E nada disso tem a ver com o crescimento do PIB da maior nação da Ásia. Cresceu porque foram competentes.
No momento em que o Brasil mais precisa de insumos produzidos na China, o presidente da República voltou a cutucar o governo chinês e a lançar dúvidas sobre a origem do vírus. Além disso, ameaçou editar um decreto contra as medidas de restrição impostas por governadores e prefeitos, com aval do Supremo Tribunal Federal. Repetindo o velho adágio popular pau que dá em Chico dá em Francisco, a iniciativa foi avaliada pelo ministro do STF Marco Aurélio Mello como “arroubo de retórica”. Sou apenas um voto nessa multidão de eleitores, mas não entendo como alvissareiro um mandatário vez por outra tentar decretar alguma coisa contra alguém, desafiar a Suprema Corte e prazerosamente criticar parceiros comerciais que, se nos abandonarem, farão muita falta. No caso específico da China, ficar sem as vacinas e os insumos que o país produz significará morrermos todos. Será esse o desejo do líder?
Enquanto isso, o caos que se instalou no país não parece ter solução a curto e médio prazos. Paralelamente a esse sinistro, sombrio e funesto quadro, há uma CPI investigando ações (?) e omissões do governo no controle da pandemia. Um dia depois da lavagem de roupa suja protagonizada por Luiz Henrique Mandetta, nessa quarta-feira (5) foi a vez do médico Nelson Teich, também ex-ministro da Saúde. De forma bem enfática, Teich afirmou que, após 29 dias de sua nomeação, deixou a pasta por não ter autonomia para tocá-la. Por razões que desconheço, a pergunta que deixou de ser feita pelos integrantes da comissão deve ter sido imaginada por qualquer estudante secundarista: O que o levou a pensar que teria autonomia? E quem terá?
*Mathuzalém Junior é jornalista desde 1978