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Dilacerada

Chuva, guerra, temor insano e o fim de uma vida

Publicado

Autor/Imagem:
Renan Damázio - Foto Francisco Filipino

Eu não queria.

Já fazia algum tempo que sentia isso dentro de mim. Éramos um casal feliz, com uma casa simples e bonita. Ele e eu. Preencheu-me por inteira e deixou a semente de todas as suas qualidades. As semanas passavam enquanto vivia bem e com uma rotina tranquila. Estava contente, pois agora estava grávida de 7 meses. De repente, sem aviso do destino, anúncios começam a aparecer pelas vielas. Os comentários na televisão deixaram a gente com medo. Soldados marchavam nas ruas. Uma convocação chega a nossa casa. Só pude deixar as lágrimas rolarem sob o meu rosto e tudo ficou escuro.

Passaram-se alguns meses. Senti a casa mais vazia, assim como o meu coração. Um aperto no peito me fazia perder o ar constantemente. As noites eram medonhas e do céu caíam oceanos inteiros em apenas um dia. Passei a ser quieta. Não desejava a ajuda de ninguém naquele período tão difícil. Eu já não era mais a mesma. Algo mudou. Certas vezes, ouvia o soar da sirene de emergência. Cada dia era um tormento dentro de mim. E ele chorava, pedindo minha atenção.

Tudo estremeceu. Tinha medo que a casa escura e sem vida fosse por água a baixo. As bombas caíram dos céus parecendo vagalumes. Eu gritava pela casa desesperada, ouvindo vozes, atormentada. Estava desprotegida, sozinha, sem ele, sem ninguém. Fui abandonada em uma guerra em mim. As luzes piscavam e logo apagavam. Ele chorava.

Já não dormia como antes. Não pensava direito, sequer tentava conversar com outras pessoas. Éramos apenas eu, a casa e ele. Alguns vizinhos foram embora, fugiram. Mas algo dentro de mim dizia para continuar. Eu tremia freneticamente e estava pálida. Emagreci pois, além de faltar comida, meu corpo rejeitava. O que sobrava de energia, o último sopro de vida, eu dava para ele, pois era a única parte da minha vida que me fazia lembrar do meu marido, que se foi e não mais voltará. De repente, outro clarão. Meus olhos travavam. Eu estava estática, enquanto segurava-o no colo. Eu o coloquei sobre o berço, olhei para ele, tão lindo. Ele chorava.

Minhas mãos estavam trêmulas. Senti que a música melancólica na vitrola ficava mais alta. Algo dentro de mim queria exprimir toda a raiva. Eu sabia. Eu sabia o que estava fazendo. Meu Mundo não era mais o mesmo, depois dessa guerra. Eu olhei para os lados e para a cama na minha frente. Um raio no temporal criou outro clarão. Ele chorava desesperadamente. Aquele repetitivo pranto não me deixava pensar. Minha cabeça parecia explodir, assim como as bombas. O travesseiro na cama era a única solução para que aquele barulho e todo o conflito dentro de mim cessasse. E ele não mais chorou. Nunca mais irá chorar. As lágrimas desciam sobre o meu rosto. Tudo escureceu. Fiquei inerte. Eu não queria.

Eu não queria.

Eu nunca me perdoarei.

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