Desde quando tenho memória da vida política brasileira, não recordo de outro período tão conturbado. Não pelas forças antagônicas, mas pela total ausência de sentido das frases, pela falta de conceitos que tenham um mínimo de consistência para que possamos debate-los ou, ainda, pela impermanência das palavras que vão trocando de sentido com absoluta irresponsabilidade dos utilizadores, seus utentes.
Pode um presidente propor a troca de feijão por fuzis como se fossem substâncias das mesmas naturezas e aplicações?
Recente artigo – Linguagens da Mídia: democracia, liberdade e suqvuk – publicado no Portal Pátria Latina, no dia que recordamos a morte do maior estadista brasileiro, Getúlio Vargas (24/08), discorro sobre a pedagogia colonial. Como designo o modo de comunicação dos poderes com os súditos, servos, o povo em geral, para doutrinação e para compreensão das realidades conforme as farsas e fantasias do interesse do poder.
Quantas vezes já ouvi, de pessoas totalmente dominadas pela pedagogia colonial, ser o Estadista apodado ditador. Mas que espécie de ditador? E aí restam mudos.
Hoje se discute democracia como o bem maior a ser preservado acima de todos. Mas a primeira questão é: para quem constitui o modelo atual de governança brasileiro um bem? Para os desempregados, os doentes, os que não têm escola, transporte, moradia?
Então vamos necessitar ter muito claros os conceitos e os objetivos que interessem a todos os brasileiros e não apenas à parcela que, majoritariamente, atua como advogados dos interesses estrangeiros.
Verifique-se o principal problema do País, no entendimento do próprio Governo Nacional, o qual deva constituir prioridade absoluta da administração, e a que todas demais questões devam se subordinar: a dívida pública. O que vem a ser a dívida?
Transcrevo o fato histórico, registrado por Gustavo Barroso, no segundo volume da “História Secreta do Brasil” (Editora Revisão, Porto Alegre, 1991, 1ª reedição):
“O decreto de 24/01/1824, referendado pelo marquês de Maricá, autorizou a realização duma operação de crédito no estrangeiro. Encarregaram-se dela, na praça de Londres, o conselheiro Gameiro Pessôa (visconde de Itabaiana) e o marechal de campo Felisberto Caldeira Brant (marquês de Barbacena). Lançou-se o empréstimo em duas partes, cabendo o contrato da primeira a um consórcio das casas Farquhar Crawford, Fletcher Alexander e Thomas Wilson, e a segunda a Nathan Mayer Rothschild. O primeiro datado de 1824; o segundo de 12/01/1825. O total do empréstimo era três milhões esterlinos”.
Prossigo com o historiador Barroso: “O milhão de libras da primeira operação nos foi dado pelo prazo de 30 anos, com 1% de amortização, 5% de juros anuais e tipo de 75, o que quer dizer que recebemos £ 750.000, mas ficamos devendo £ 1.000.000. A margem de £ 250.000, linda soma naquelas priscas eras, ficou soi disant para as despesas do empréstimo e, sobretudo, para ser repartida entre os intermediários, os de lá e os de cá. Nessa margem está o segredo dessas operações e do açodamento de certos homens de Estado em fazê-las”.
Para que inocentes colonizados não se escandalizem ainda mais com seus heróis, transcrevo duas condições que fizeram parte deste contrato de geração de dívida, do mesmo livro do historiador pátrio.
“condição 7ª: monopólio das compras de qualquer material de que carecesse o Governo Imperial entregue à firma dos emprestadores” e “condição 9ª: os contratadores do empréstimo se esforçariam por obter: 2,5% sobre a compra ou venda de quaisquer mercadorias para ou do Brasil; 1% sobre todas as letras de câmbio vindas para o Brasil ou dele remetidas para o estrangeiro; 1,5% sobre todos os seguros de embarque de ouro e prata”. Eis o probo e ínclito império brasileiro!
Antes de tratar da República, colham-se mais alguns elementos do Brasil Império.
O médico cearense, senador Liberato de Castro Carreira, editou pela Imprensa Nacional, em 1889, a “História Financeira e Orçamentária do Império do Brasil desde a sua Fundação” (reeditada pelo Senado Federal, Brasília, 1980, em dois volumes), de onde retiro, da Introdução, o que demonstra ser o entendimento do mais relevante atributo de um País: sua soberania.
Está na carta dirigida pelo príncipe regente ao povo brasileiro, em 06/08/1822: “Legislou o Congresso de Lisboa sobre o Brasil, sem esperar pelos seus representantes, postergando assim a soberania da maioria da nação”. E, adiante, no mesmo documento, faz o regente saber que o crédito e as dívidas bancárias são questões de soberania:
“Lançou mãos roubadoras aos recursos aplicados ao Banco do Brasil, sobrecarregado de uma dívida enorme nacional, de que nunca se ocupou o Congresso”.
E hoje afasta da estrutura pública, sob inexplicável autonomia, o Banco Central, instrumento de gestão da moeda soberana nacional. Quem avalizará o critério de uma instituição, independente da manifestação da Nação? Mas a soberania clamada pelo príncipe regente não se manteve quando primeiro imperador. Como aqueles que, hoje, se enrolam na bandeira nacional para alienar o patrimônio natural e o construído pelo povo brasileiro.
Em 1821 o Tesouro apontava dívida de 9.870:918$096. Que se transforma em 10.176:580$783, no ano fiscal de 1822, e, em 1823, 12.055.582$456 (conforme Liberato de Castro Carreira, citado).
Cabe uma consideração. As finanças, que neste século XXI voltam a ter o poder sobre os governos, não se compõem do mesmo modo no século XIX e atualmente. E mais, as finanças que se tornam vitoriosas na luta contra o poder da industrialização não são as mesmas nos anos 1980 e 2020.
A mais remota dominação das finanças foi a “escravidão” pela dívida. Foi sabendo usar a arma da dívida que as finanças inglesas sufocaram, como poder, a indústria e o comércio. Veja bem o caro leitor, ela não estrangulou mas se apropriou dos ganhos das outras áreas de atividades econômicas. É preciso ter sempre muita clareza sobre quem é o poder que induz a ação e lucra com ela. Houve momentos no passado que foi o poder militar, outros o poder espiritual, mas, desde o século XV, no ocidente europeu, e, em especial, na Inglaterra, vêm sendo as finanças.
A partir do Brasil formalmente independente, apenas nos governos de Getúlio Vargas e nos governos militares de Costa e Silva a Ernesto Geisel, o poder não esteve com as finanças. E tão somente Getúlio Vargas promoveu a auditoria da dívida brasileira que a reduziu a menos da metade.
No I Império, era a dívida que submetia os governos às finanças, o que dá significado especial aos números apresentados para os três anos após a Independência. Fomos nos tornando cada vez mais dependentes dos capitais ingleses, até que eles se transformam nos verdadeiros governantes do Brasil Império e da I República.
Tabela apresentada por Castro Carreira, no segundo volume da obra citada, tendo por título “condições dos empréstimos levantados pelo Brasil em Londres”, de 1824 a 1888, mostra que, apenas em fevereiro de 1859, nossa dívida correspondeu a 100% do empréstimo obtido. O que Gustavo Barroso denominou tipo, variou de 52 a 96,5. Pagamos pelo que não tivemos!
Então, não deve ser a dívida, não auditada, que conduza o Brasil, mas as principais carências de nosso povo.
Democracia? O bem que não podemos abdicar é nossa cidadania. E como se constrói a cidadania?
O conceito mais usual, entre os principais autores da atualidade, nos diz que cidadania é ser um igual, um par, que não haja entre os habitantes do país alguém a dever a outro.
Para que se alcance esta situação, certamente a função primordial do Estado nunca será pagar uma dívida, ainda mais duvidosa, e a capitais de origens suspeitas.
Ao Estado cabe prover investimentos para que haja emprego para todos brasileiros. Portanto o primeiro bem a preservar é o emprego, que dará a todos a condição de se realizar pessoalmente, contribuir para sociedade e obter recursos para sobrevivência. E, simultaneamente, prover saúde, educação, mobilidade urbana e habitação, com saneamento básico, para todos brasileiros. Isso será a base da cidadania.
Mas apenas uma nação soberana pode dispor, a seu exclusivo critério, dos seus recursos. A Nação colonizada, dependente, escrava, não pode ter habitantes cidadãos. Então a soberania da qual Pedro I soube escrever mas não soube impor, é indispensável para o Brasil Cidadão.
E soberania significa ter capacidade de se defender das agressões materiais e culturais externas. A pedagogia colonial que o mundo OTAN nos impinge, nos coage, nos pressiona, deve receber de todos nós viva repulsa, enérgico enjeitamento, forte oposição.
Sem soberania, sem cidadania, nunca haverá democracia.