Durante a busca por dados e informações sobre um dos períodos mais negros da cidade Estrutural, uma porção de material foi encontrada, entre vídeos e fotos. Mas esse arquivo não representa sequer 10% de tudo o que foi reunido por moradores e líderes comunitários no Museu de Sangue, erguido onde ficava a casa de Roberto José dos Reis Filho, o Azulão, sobrevivente da chacina de 8 de agosto de 1998.
Apesar da importância histórica para a cidade, o museu foi desativado. Segundo o ex-deputado distrital José Edmar, ouvido por Notibras, as portas foram fechadas devido um acordo firmado entre ele o senador Cristovam Buarque (PDT), governador na época. Mas não foi uma decisão amigável. Ao contrário. Teria sido um achaque.
Em setembro de 2002, Zé Edmar foi condenado a pagar indenização por danos morais de 40 mil reais a Cristovam Buarque. Na mesma decisão o ex-deputado teve que indenizar o PT em 10 mil. O valor da causa, no entanto, era de 384 mil. Tudo por associar, na imprensa, o nome do ex-governador a um grupo de extermínio que agiu na Estrutural. A ação foi impetrada em dezembro de 1999, após a derrota do então chefe do Executivo em sua campanha de reeleição.
Sem dinheiro para pagar a indenização, Zé Edmar diz que recebeu a proposta de Cristovam para desativar o museu. Em troca, a dívida seria perdoada. Mas o principal motivo que teria impulsionado essa contrapartida era de que o museu poderia manchar de sangue o nome e as mãos do senador.
O senador nega as acusações e diz que todas as tratativas dessa ação foram gerenciadas apenas pelo advogado Claudismar Zupiroli. Sua entrevista será publicada na íntegra nesta segunda-feira, 27, e faz parte desta série de reportagens especiais.
Afora o prejuízo financeiro por conta da ação, Zé Edmar elenca outros “preços pagos” daquele período. “Foram inúmeras vítimas. Pessoas que morreram, ficaram mutiladas, braço quebrado, olho furado. Além daquelas que desapareceram. Tudo por causa da pressão de um governo nazista”, compara.
Herói para alguns e até chamado de traidor por outros, o ex-deputado analisa os assassinatos ocorridos em 98. “Num determinado momento de ações, ações e ações da PM aqui dentro, eles encontraram um camarada bruto. Na hora em que entraram no lote, o morador meteu bala. Foi dentro do lote. Não foi na rua. Tem que se respeitar a vida humana do PM, mas é preciso entender que o domicílio da pessoa é inviolável”, diz.
Se o museu na Estrutural foi desativado, na memória de Zé Edmar não. Ele tem várias lembranças. Negativas, é claro. Uma delas é esta: “Um morador daqui (a entrevista foi cedida na própria cidade) tinha um pequeno comércio. Um dia, por volta das 22h, eu cheguei e tinha um PM arrastando uma mulher. O seu marido gritando. Ela era dona de casa que estava dormindo com o seu marido a noite e a PM entrou na casa para pegar os bujões de gás”.
Mas vale um adendo importante. Nem todos os policiais militares nesse período eram coniventes com os conflitos, revela o ex-deputado. “Tinha muito policial que não aceitava o que acontecia aqui. Estavam do nosso lado. Deixavam passar comida. Davam informações importantes”, diz, reescrevendo parte da história.
Foi justiça com as próprias mãos
Muita coisa continua nebulosa no caso da chacina na Estrutural. As interrogações que existem, têm respostas que convergem para uma única conclusão: a que de fato as mortes ocorreram por vingança e não pela Operação Tornado que visava o desarmamento da população. Essa operação, inclusive, estava prevista para ocorrer apenas em Samambaia e Ceilândia. Mas os policiais militares decidiram desviar para a Estrutural dois dias após a morte do PM Rubens (Leia mais aqui).
No dia 22 de setembro de 2003 uma testemunha importante corroborou para essa conclusão. O promotor Nísio Tostes disse em depoimento que o Ministério Público não foi informado da extensão da Operação para a Estrutural. E disse ainda que o coronel Souza Pinto, na época major, afirmou que o trabalho da PM se limitaria as regiões de Samambaia e Ceilândia. Hoje, o promotor está no caso como testemunha.
Espelho do tempo
Tem passado, por mais dolorido que tenha sido, serve de parâmetro para fazer o balanço da própria vida. É basicamente essa avaliação que Luane dos Santos Veloso faz. Formada em Recursos Humanos, casada e com uma filha, muita coisa mudou na vida dela. Menos a cidade de moradia. Ela está no vídeo publicado na primeira reportagem desta série. À época ela tinha de seis para sete anos.
Notibras encontrou e conversou com Luane. Completando 24 anos de idade exatamente hoje, ela lembra pouca coisa dos “anos de chumbo” na Estrutural. Mas a imagem mostrada a ela recupera um pouco do passado que não orgulha pela violência, mas pela luta dos moradores.
“Quando vejo essa foto, percebo o quanto foi difícil chegar onde estamos. Nesse dia lembro o desespero da minha mãe chorando. Não entendia muita coisa por causa da idade, mas olhando tudo isso não tenho vergonha de mostrar a ninguém essa imagem, pois foi onde tudo começou e foi o preço que pagamos para ter o que temos hoje”, reflete.
Elton Santos