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Cinema, invenção sem futuro, sobrevive firme 120 anos depois

Luiz Zanin Oricchio

É significativo que a data escolhida para o nascimento do cinema seja a da primeira sessão pública e não a da invenção da tecnologia que o torna possível. Foi há 120 anos, no dia 28 de dezembro de 1895, no Grand Café, no Boulevard des Capucines, em Paris, que os irmãos Louis e Auguste Lumière organizaram a primeira sessão de cinema da história.

Projetaram, para um público pagante, dez filmetes, com alguns minutos de duração cada um. Trinta e três pessoas pagaram um franco para ver esses filmes. Estava apresentado o cinema ao mundo.

Curioso, também, que esses pioneiros não ligassem muito para o que haviam inventado. Tanto assim que se atribui a Louis Lumière uma das frases mais equivocadas de todos os tempos. Teria ele dito que “O cinema é uma invenção sem futuro”.

Assim, decidiram não vender um dos seus “cinematógrafos” a um interessado, o mágico chamado Georges Méliès. Este teve de adquirir o aparelho na Inglaterra e passou a fazer filmes de fantasia. O mais famoso deles, Viagem à Lua (1902), usa efeitos especiais e é delicioso de se ver até hoje.

Os Lumières faziam “documentários”, como A Chegada do Trem à Estação de Ciotat ou A Saída dos Operários das Usinas Lumière, enquanto Méliès fazia “ficção”, inventava histórias e dava asas à imaginação. Estava estabelecida a diferença entre essas duas vertentes do cinema – a ficcional e a documental, que, sabemos agora, se cruzam em vários pontos e se fertilizam mutuamente.

Para contar uma história à sua maneira e não ser mero imitador do teatro, o cinema precisava desenvolver linguagem própria. Considera-se que foi o norte-americano D.W. Griffith o pioneiro a estabelecer as leis de narrativa do cinema clássico com seu O Nascimento de Uma Nação (1915), de conteúdo racista, porém de importância capital na história do cinema. Griffith inventou praticamente tudo no que seria essa grande indústria norte-americana, dos gêneros (inclusive o faroeste), à técnica da montagem paralela, em que duas narrativas se sobrepõem em tempos e lugares diferentes. No entanto, na Itália, Giovanni Pastrone desenvolvia a linguagem do cinema de forma independente e há quem sustente ter sido ele, com Cabíria (1914), a abrir o caminho seguido por Griffith.

De qualquer forma, a “invenção sem futuro” se espalhou rapidamente por todos os continentes e países. No Brasil, as primeiras filmagens foram feitas já em 1898, pelos irmãos italianos Segreto. São “vistas” da Baía de Guanabara, tomadas a bordo do paquete francês Brésil.

Em sua modalidade industrial, o cinema finca raízes na Califórnia. A criação dos grandes estúdios no distrito de Hollywood, o domínio da comercialização dos filmes e da exibição, tornam o cinema norte-americano dominante em quase todo o mundo, situação vigente até hoje.

A linguagem cinematográfica, no entanto, evolui em diversos pontos do planeta, em especial na Europa. Na União Soviética, Sergei Eisenstein apresenta uma obra-prima influente até hoje – O Encouraçado Potemkin (1925), usando formas inovadoras de encenação e montagem. Pode-se dizer o mesmo, no âmbito documental, de Dziga Vertov, com seu O Homem com a Câmera (1929)

Diversas “escolas” estéticas exprimem suas ideias através do cinema, como são os casos do surrealismo, do futurismo, do expressionismo, produzindo obras significativas, como Um Cão Andaluz (1928), de Luis Buñuel, ou Nosferatu (1922), de F. W. Murnau. Charles Chaplin cria um personagem, Carlitos, e um estilo todo seu, tornando-se o nome mais famoso da fase muda.

O cinema começa a “falar” por volta de 1930, o que provoca uma revolução. Com o cinema falado, estúdios, atores e estilos tornam-se obsoletos da noite para o dia e um novo mundo surge. Chaplin resiste, mas acaba aderindo ao novo formato, ainda que tardiamente.

Misto de arte e técnica, o cinema não para de se modificar. E com velocidade espantosa. No após guerra, os italianos criam o neorrealismo (o título inaugural é Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rossellini, 1945), filmando na rua, com personagens populares, e espírito crítico. O neorrealismo insemina uma série de “cinemas” pelo mundo, com seu espírito livre, produção ágil e temática social. No fim dos anos 1960, novo baque nas escolas tradicionalistas: surge na França a nouvelle vague, cujo líder, e maior demolidor, Jean-Luc Godard, espanta o mundo em sua estreia com Acossado (1960).

Nos rebeldes anos 1960, em consonância com a época, pipocam pelo mundo os “novos cinemas”. O Cinema Novo brasileiro, o Free Cinema inglês, o novo cinema alemão, o New American Cinema Group entram em sintonia áspera com um mundo a ser modificado. São inovadores na linguagem e revolucionários no conteúdo. No Brasil, com diferença de poucos anos, Glauber Rocha lança duas obras-primas nessa tendência: Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963) e Terra em Transe (1967).

A própria meca da indústria do cinema se beneficia temporariamente com toda essa modificação. Atravessando uma crise sem precedentes, Hollywood abre espaço para jovens inovadores, como Dennis Hopper (Sem Destino, 1969), Roger Corman, Peter Bogdanovich, Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Monte Hellman e outros. Entre eles, Steven Spielberg e George Lucas, que estreiam com filmes pequenos como Encurralado (1971) e American Graffiti (1973) e depois aderem a grandes produções como Tubarão (1975), Contatos Imediatos de 3.º Grau 1977) e Guerra nas Estrelas (1977). Retomando as rédeas do processo, Hollywood passa rapidamente da fase dos inventores à dos blockbusters, os arrasa-quarteirões, na qual ainda estamos.

Nesse meio tempo, as tecnologias mudaram, passamos do suporte analógico ao digital, mas o élan inventivo retraiu-se. Em tese, o cinema libertou-se dos grandes investimentos. Com um celular na mão e um programa de edição no laptop, qualquer um de nós é capaz de fazer um filme. Cumpre-se o desejo de Alexander Astruc que, precursor da nouvelle vague, dizia que o instrumental do cinema deveria ser leve, barato e disponível como eram a caneta e o papel para o escritor.

Chegamos lá, mas onde estão essas obras? Se existem, não as vemos, porque o sistema de exibição ainda é dependente do grande capital.

O sistema de exibição também mudou. Hoje ainda assistimos a filmes nas salas comerciais, segundo o velho dispositivo criado no século 19. Mas os vemos mais ainda na TV, em DVDs, em canais pagos, em streaming, em tablets e telas de celulares. Tudo é cinema. Mas se trata ainda da mesma “invenção sem futuro” de que falava Lumière?

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