A lógica da depreciação do objeto ou do objetivo não alcançado é simples: “Quem desdenha quer comprar”. O aforismo ou ditado popular normalmente é empregado para afirmar que muito desprezo pode ser sinal de desejo escondido. Para o protagonista da narrativa de hoje, não pode ser. É a forma mais bizarra que ele encontrou para informar ao presidente Luiz Inácio que ele está à disposição para o que der e vier e para o que vier e der. Desde que o fim político de Jair Bolsonaro se consolidou, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) não consegue vislumbrar um microfone aberto, uma câmera ligada (mesmo escondida) ou um jornalista à mão para cutucar Lula do modo mais infantil do mundo. “Jamais aceitarei apoio do meu partido ao governo do PT” ou “Não conversarei com o presidente até que ele deixe a Presidência da República”.
Parece sério, mas não é para quem conhece o “ex-amigo” de Lula da Silva e ex-ministro de Bolsonaro. O partido, também comandado pelo deputado Arthur Lira (AL), já está com os dois pés e todos os tentáculos no governo do qual Ciro desdenha da boca para fora. Sem poder, o senador sabidamente sente comichão por todo o corpo, a começar pelos bolsos. Faz alguns anos, o senador piauiense deixou de ser parlamentar para se dedicar aos “afazeres” de ministro, líder de governo ou habitué do Palácio do Planalto. A falta disso é o fato gerador dos comichões. Sua base eleitoral, o Piauí, é coisa do passado, no máximo algo que se visita como representante do povo apenas para pedir votos.
Não tenho bola de cristal, mas, sei (como todos sabem) até onde vai a frustração e o desprazer daqueles que se afastam dos tapetes vermelhos do poder. Quem não se lembra que, aqui mesmo neste espaço, afirmei que bastaria um estalar de dedos do presidente Luiz Inácio para que o ex-ministro bolsonarista voltasse a se bandear para as hostes petistas? Pois foi só o estalar dos dedos. Vale lembrar que o afastamento só ocorreu por três razões afins, todas determinantes para aqueles cuja ideologia é sinônimo de vantagens pessoais: poucos acreditavam na ressurreição de Lula como mandatário da nação, todos tinham certeza de que Jair Messias seria eterno e a oferta do ex-presidente foi muito acima do que consideramos generosidade.
Associado a Arthur Lira, presidente da Câmara, Ciro não só dava as ordens no Planalto, mas era quem liberava os lençóis e as correntes para as assombrações do governo Bolsonaro. Tudo em nome da (des)governabilidade. Nesse período, Lula tinha as alcunhas de ladrão, ex-presidiário e líder de quadrilha. O atual presidente era o demônio, o PT o próprio inferno. Como na política tudo é possível, o que um dia foi feio se torna bonito da noite para o dia. Ciro Nogueira e Arthur Lira agora arrastam as correntes que sobraram da gestão anterior para calçar a caminhada de Lula rumo ao paraíso administrativo. A aprovação da Reforma Tributária pode ter sido o divisor de águas na relação deles com a turma do comunismo.
Depois da solidificação do sucesso do governo Lula, o senador, ex-ministro da Casa Civil do mito Bolsonaro, decidiu alterar pela enésima vez sua biografia de parlamentar preocupado com as causas do país. Como ainda temos eleitores que acreditam em duendes e bruxas, Ciro Nogueira tem chances de recuperar o status quo. A prova de que ele é antenado ocorreu logo após o resultado da votação da reforma, quando utilizou as redes sociais para expressar críticas aos “extremistas” e enfatizar que nenhuma oposição deve ser contra o Brasil. No texto, Nogueira ressalta a importância de valores profundos sem radicalismo ou extremismo. A posição no sentido oposto da campanha promovida por Bolsonaro contra a Reforma Tributária não é de graça.
Suas declarações surgem exatamente depois de duas derrotas políticas seguidas de Jair Messias: a inelegibilidade por oito anos e a aprovação da PEC da Reforma, inclusive com votos do Partido Liberal, do Republicanos e do próprio PP, ambos considerados o praticável da base bolsonarista. Diante do contexto amplamente favorável a Luiz Inácio, espertamente Nogueira reforçou a importância de uma oposição que atue em projetos avaliados como relevantes, independentemente da posição do governo vigente. Sem a força e o poder de antes, agora ele defende a ideia de ser radicalmente a favor do Brasil, destacando a necessidade de não se opor a um governo que faça autocríticas e defenda pautas que sempre foram defendidas. Ou seja, nada de novo em seu discurso. Bastou o retrovisor mostrar um novo caminho para o Brasil para que os críticos de ocasião, entre eles o senador, se dessem conta de que ou fecham com o petismo ou terão de acompanhar Bolsonaro na escuridão do manicômio do ostracismo. Ciro sabe que em breve surgirá um carguinho. Ele bateu e sentiu que as portas estão escancaradas.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978