O jornal espanhol El País avalia que as pessoas que o governo Lula tirou da pobreza decidirão com seu voto o resultado das urnas em 5 de outubro. O texto, assinado pela corresponde María Martín, tem o seguinte teor:
Kellia de Oliveira, 29, não sabe quando poderá ser mãe. Seu marido não tem pressa, mas sobretudo não tem como manter um filho.
“Se não posso comprar um filé, compro uma salsicha, mas meu filho não vai deixar de tomar leite. Como mantenho uma criança com o que entra em casa?”
A renda familiar os situa na nova classe média do Brasil (classe C), embora flertem com a classe D quando ele, que hoje ganha R$ 1.100, fica desempregado, o que acontece com certa frequência. Quase 100 milhões de brasileiros em idade de trabalhar vivem com salários parecidos com o de Kellia, três vezes o salário mínimo, estabelecido em R$ 724.
Trata-se de uma classe social de novos consumidores e chave do ponto de vista eleitoral. Seu poder aquisitivo, além de fazer disparar o consumo interno, poderoso motor da economia, revolucionou, na última década, o perfil do brasileiro médio. Este chega à universidade, tem acesso à tecnologia, conta em banco, acesso ao crédito, compra roupas de marcas, investe em um carro, e muitos já têm sua casa própria. Como Kellia.
Seu salário como auxiliar de contabilidade em uma pequena editora só supera os R$ 1.600 quando ela renuncia às férias. Então, ela se transforma em uma mulher com um pouco mais de dinheiro, mas sem tempo para gastá-lo. Nascida no Ceará, nordeste do Brasil, não conhece o Rio de Janeiro nem a maioria das cidades de São Paulo, onde vive. Raramente passou o fim de semana no litoral. Sua rotina está estritamente definida em uma planilha Excel. Um conserto em casa ou um gasto mal calculado significa entrar em números vermelhos em um dia a dia no qual não pode pagar quase nada à vista.
“Vivo em função do meu cartão de crédito. Trabalho pensando no que tenho que gastar. É raro o mês em que me sobra algo para uma emergência”, afirma.
Criada em um povoado onde sequer havia escola, sua situação atual é muito melhor do que ela mesma esperava alguns anos atrás. Seus pais, um operário e uma faxineira, jamais ganharam nem ganharão o que ela ganha. Kellia é a mais nova de quatro irmãos e a primeira que foi além do ensino básico.
“Minha mãe está muito orgulhosa de mim”, reconhece com a voz embargada, também de orgulho.
No entanto, ela franze a testa quando perguntada sobre o milagre social de tirar 30 milhões de brasileiros da pobreza e da economia paralela, atribuído ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva. É o que os economistas consideram o paradoxo da nova classe média brasileira.
“No nordeste, o Partido dos Trabalhadores (PT) ajudou, mas aqui… Já votei em Lula, confiamos nele para fazer algo pelo povo. Fez um pouco, mas não foi suficiente depois de 12 anos de PT. Ele tinha poder para fazer muito mais na educação e na saúde.”
“Essa faixa da população, que o PT tirou da pobreza e colocou com um contrato de trabalho e garantias de crédito, agora, como vê que paga impostos, começa a se fixar em outras alternativas políticas além do PT e olha mais à direita”, explica o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-ministro da Comunicação no governo de Fernando Henrique Cardoso e atual diretor da agência Questinvest.
Kellia, por sua vez, não se inclina para a direita, mas não quer votar de novo no PT. Como indica uma pesquisa do Datafolha do último dia 10, o partido de Dilma Rousseff perde adeptos entre os brasileiros que ganham de dois a cinco salários mínimos por mês, embora ainda se mantenha líder entre os mais pobres.
“Já votei sem saber nada sobre o programa ou o candidato, mas hoje me pergunto: o que estão me oferecendo? Agora tento me informar sobre o que defendem, desde os direitos das mulheres até suas propostas em educação e saúde.”
Com os programas presidenciais dos candidatos ainda indefinidos ou abertos a alterações, Kellia não tem certeza do que fará com seu voto em 5 de outubro.