“Submeti ao exame e à praxe tudo o que do amplíssimo teatro da natureza observei ou recebi dos indígenas”. (Guilherme Piso, História da Medicina Brasileira, 1648)
Vamos supor que a CPI da Pandemia que ouve os vivos, especialmente os vivíssimos, tenha o poder de convocar também os mortos, entre eles o médico Guilherme Piso, considerado o pai da medicina tropical. Advertido que poderia ter sua alma presa no inferno se mentisse, ele jurou dizer a verdade. Deram-lhe, como de praxe, 15 minutos para se apresentar:
– Meu nome é Willem Pies, em português Guilherme Piso. Nasci em Leiden, Holanda, em 1611, e morri em Amsterdã numa segunda-feira, 28 de novembro de 1678. Viajei em 1637 para Pernambuco como médico particular do príncipe Maurício de Nassau e ali vivi oito anos, com o salário pago em florins pela Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais. Orientei a política sanitária nos serviços públicos como coleta de lixo, drenagem de terrenos, construção de jardins e praças, pavimentação de ruas, construção de pontes. Ajudei a sanear e a urbanizar Recife.
Piso faz breve pausa para beber água (e para poupar o leitor de um parágrafo demasiado longo). Prossegue:
– Retornei a Amsterdam, lá me casei e passei a clinicar. Ocupei o cargo de inspetor do Colégio Médico, do qual fui deão – a autoridade máxima deste órgão colegiado. Sou autor da primeira História da Medicina Brasileira (1648) e da História Natural e Médica da Índia Ocidental (1658) edição impressa em latim. Descrevo lá 22 doenças e as propriedades de 114 plantas Todo esse saber fitoterápico aprendi com os índios, o uso de plantas adstringentes, afrodisíacas, venenosas e até abortivas. Dito isto, coloco-me à disposição dos senhores senadores.
Omar Aziz – Com a palavra o nobre relator.
Renan Calheiros – Sim ou não, o senhor teve experiência na luta contra alguma epidemia?
Guilherme Piso – Sim.
Renan – Qual?
Piso – A epidemia de varíola, conhecida popularmente como “bexiga”, matou em 1641 muitos escravos dos engenhos e milhares de índios, cujos corpos ficavam cheios de manchas vermelhas, pústulas e bolhas com pus que atingiam as mucosas nasal e da boca. Era como se estivessem atacados por uma lepra mortal, que deformava o corpo inteiro. Quem escapava da morte podia ficar cego e com a cara esburacada.
Renan – O senhor fez tratamento precoce? Usou cloroquina? Salvou algum paciente?
GP – A varíola não tinha cura, senador. Os remédios não matavam o vírus, mas aliviavam os sintomas parecidos com os da gripe – febre, dor de cabeça, dor muscular, mal-estar. O contágio se dava através de secreções e da saliva. A gente isolava os doentes. Foi o que fiz com Margarida, filha do pastor Soler, que se salvou e que era, por sinal, muito gostosinha. Não gosto de fofoca, mas preciso dizer que ela era amante do Príncipe Nassau e, quando ficou com a cara de areia mijada, cicatrizes e olhos chorões, foi por ele abandonada. Só um século após minha morte é que descobriram a vacina.
Omar – Quero foto da “gostosinha” para anexar ao relatório. Depois falo com o senhor em particular. Agora passo a palavra ao senador Oto Alencar.
Oto Alencar – Sou também médico e já vi que, ao contrário do general Pazuello e da doutora Nise, o senhor sabe a diferença entre o vírus e o protozoário. Gostaria que comentasse o deboche de Jair Bolsonaro, quando em vez da vacina recomendou contra a covid-19 o “chá de carapanaúba, saracura ou jambu dos índios Balaios”, um povo que nem sequer existe.
Piso – Senador, minha resposta está no meu livro editado em 1957 pelo MEC. Permita-me ler um trecho curto do que escrevi:
– “De fato, creio ser não só indigno, mas detestável, num assunto tão sério de que depende a salvação de tantos homens, ensinar coisas não acordes com os experimentos, expondo assim a perigo a vida dos doentes” (pg.8).
Oto – Não podia ser mais atual. A cloroquina, muito boa no combate à malária, é ineficaz para a covid. O chá seria, então, uma espécie de “cloroquina da maloca”? Existe mesmo medicina indígena?
Piso – “Cada qual, sobretudo os velhos, preparam sem dificuldades remédios de diversos gêneros obtidos por toda parte nas florestas. Usam remédios simples e se riem dos nossos. Nisso merecem vênia. […]. Todos os íncolas das Índias exercem a medicina e pesquisam o conhecimento das doenças e tendo ambas as Índias mais providas de medicamento do que de médicos teóricos, ninguém se admire de que até agora não estejam divulgadas as propriedades de muitíssimos remédios de notáveis virtudes, ocultos em seu seio e dignos de sair à lume. […] São utilíssimos e podem até impressionar os médicos mais eruditos [pg.74]
Humberto Costa – Sou médico pós-graduado em medicina geral comunitária e não sabia. Na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco nunca me falaram disso. Gostaria de ouvi-lo sobre como os pajés curaram soldados com pernas gangrenadas, depois do ataque da armada luso-espanhola aos holandeses, em 1640.
Piso – Senador, responderei com outro trecho do meu livro:
– “Lembro-me que os bárbaros, nos acampamentos, por meio de gomas frescas, sucos e bálsamos, livraram do ferro e do fogo e restabeleceram com êxito os membros dos soldados feridos por balas de espingardas, que estavam para ser amputados por cirurgiões europeus, lusitanos e batavos… Na preparação, prescindem de laboratórios e, ademais, sempre tem à mão sucos verdes e frescos de ervas… (pg. 9).
Humberto Costa – Embora trate os índios de “povos ignorantes, bárbaros, atrasados e de nenhumas letras”, o senhor se maravilhou ao descobrir como os pajés indígenas impediram que soldados com pernas gangrenadas virassem saci como receitava a medicina oficial europeia da época.
Omar – Isso acontece ainda hoje. Quando eu era governador do Amazonas, uma menina de 12 anos, LB, foi picada por uma cobra jararaca em Pari Cachoeira. Os médicos do Hospital João Lúcio, que queriam amputar o pé esquerdo dela, não permitiram a pajelança, ela foi então transferida para o Hospital Universitário Getúlio Vargas, onde foi tratada por pajés e por um cirurgião e de lá saiu caminhando normalmente. Ocorreu caso semelhante com Fernando José Baniwa, 62 anos. Médicos queriam decepar a perna dele, a família resistiu, levou-o de volta à comunidade e lá não deixaram que virasse saci.
Marcos Rogério – Protesto. Indubitavelmente essa é uma narrativa po-li-ti-ca para desmoralizar a narrativa robusta do presidente Bolsonaro, mas nós temos outra narrativa técnica robusta sobre a “cloroquina da maloca” que se contrapõe à narrativa do depoente. Não perderemos essa guerra de narrativas.
Piso – Senador, nunca ouvi falar o nome de Bolsonaro, no entanto, a estratégia dele aqui exposta parece demonstrar um discurso que já era obscurantista no séc. XVI, produto de mentes colonizadas. Suas opiniões retrógradas me fazem pensar que ele viveu em séculos anteriores e desapareceu há muito tempo.
Randolfe Rodrigues – Segundo as atas dessa CPI, o senador bolsonarista Marcos Rogério já usou 16.853 vezes a palavra “narrativa”, que ele descobriu recentemente, por ela se deslumbrou e por ela morre de paixão, assim como pela palavra “robusta”. Suplico que se contenha. Que seja argumentativo em lugar de narrativo. Doravante, ele será multado em R$ 50,00 reais cada vez que “narrativizar” e “robustizar”, destinando-se a multa ao pagamento da dívida externa brasileira. O troco será aplicado em obras sociais. (Randolfe, que substituiu Omar na presidência, faz uma pausa e bebe água. Prossegue)
– Na qualidade de historiador formado pela Universidade Federal do Amapá, reconheço a importância do depoimento do médico Guilherme Piso, cujo livro foi lembrado na segunda-feira (7) no evento Raízes-RJ – I Encontro de Saberes Populares e Tradicionais em Saúde, organizado pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, com a participação de Célia Xacriabá (APIB) Cleonice Pankararu (Aldeia Cinta Vermelha) e do autor do Taquiprati. Declaro a sessão suspensa.
P.S. 1 A abertura do evento Raízes, que contou com a fala do sábio Carlos Tukano, foi feita por José Jorge de Carvalho (UnB): “Encontro de Saberes. Uma aliança entre a Academia, o SUS e os Mestres e Mestras dos Saberes”. No encerramento, Antônio Bispo dos Santos discorreu sobre “Colonização e a Resistência dos Saberes Tradicionais”.
P.S. 2 – Referências bibliográficas:
a) Guilherme Piso. História Natural e Médica da Indias Ocidentais (escrito em 1648). Coleção de Obras Raras. Rio. MEC – Instituto Nacional do Livro. 1957 (Traduzida e anotada por Mário Lôbo Leal, com esboço crítico do historiador José Honório Rodrigues.
b) CHAMBOULEYRON, Rafael; BARBOSA, Benedito C.; BOMBARDI, Fernanda A.; SOUSA, Claudia R. de. ‘Formidável contágio’: epidemias, trabalho e recrutamento na Amazônia Colonial (1660-1750). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 18, n. 4, p. 987-1004.
P.S. 3 – O livro de Piso está esgotadíssimo, tinha alguém vendendo na internet por R$ 650,00. Sugiro à Editora Valer, de Manaus, que o publique (está isentado de direitos autorais) e chame para fazer o prefácio (aí sim, pagando) o tukano João Paulo Barreto, cofundador do Centro de Medicina Indígena da Amazônia e doutor em antropologia.
P.S. 4 – A gente sente vergonha do Brasil quando ouve na CPI as falas oportunistas, medíocres e mentirosas de Eduardo Girão (Phodemos-CE), Jorginho Melo (PL-SC), Luiz Carlos Heinze (PP-RS) e Marcos Rogério (DEM-RO). Nesta sexta (11) sentimos orgulho de ser brasileiro com a aula dada por Natália Pasternak e Cláudio Maierovitch, acusados de buscarem a fama. “Natália, com fama ou sem fama, nós te ama”.