Luis Carlos Alcoforado e Erika Dutra Xavier
No julgamento da ex-presidente Dilma, sobreveio questão de ordem suscitada no plenário do Senado Federal, segundo a qual a condenação por crime de responsabilidade haveria de ser fatiada em duas pressuposições fático-jurídicas, como institutos penal-administrativos autônomos: a perda do cargo e a inabilitação para o exercício de função pública por oito anos.
Cindido o julgamento em duas etapas, reconheceu-se a caracterização da infração e, na segunda parte, acolheu-se o questionamento para que os senadores-juízes deliberassem sobre o castigo a ser imposto à ex-presidente considerada culpada por crime de responsabilidade.
A Constituição Federal comporta interpretações, compreensões e entendimentos sob o comando de hermenêutica que traduza o desejo primevo do constituinte, especialmente quando o intérprete se depara com norma constitucional em cujo comando se embaça intelecção finalística.
O Brasil carece de estabilidade constitucional, por força dos surtos de períodos que intercalam instabilidade e estabilidade de suas épocas democrático-institucionais, mas as defectividades que consagram a convivência com novos textos legais não permitem que se prospectem interpretações manietadas mais pela circunstância da lógica política do que pela lógica jurídica.
No caso da sanção em análise, é assombrosa a clarividência do texto constitucional, segundo o qual eventuais condenações oriundas do julgamento proferido por dois terços do Senado Federal contra Presidente e Vice-Presidente da República, que se restringe aos crimes de responsabilidade, limitar-se-ão “à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública”.
O mesmo parágrafo único do art. 52 da Constituição deixa claro, também, que o governante condenado estará sujeito a julgamentos em outros foros, e, por conseguinte, a outras sanções previstas no ordenamento.
Trata-se de comando que prescinde de esforço hermenêutico para recriar a vontade do constituinte, com o intuito de acomodar interesses afagados por políticos que, perseguidos pela lei, buscam a reforma intelectiva do texto sem o concurso da reforma constitucional.
A regra é clara, haja vista que há, indissociavelmente, um núcleo sancionatório, regido pela conjunção de duas penas que se aplicam ao agente que comete o crime de responsabilidade, sem que se possa disjungir causas e efeitos, quando o Senado Federal declara culpado o Presidente da República.
Não se perde o cargo sem a inevitável cominação da inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, porque o constituinte pretendeu aplicar ao faltoso uma pena composta e conjuntiva, sem prejuízo de outras sanções.
Aliás, é lícito, por mero exercício acadêmico, compreender-se que se trata de um só castigo, segundo a unidade de propósitos da sanção cominada para o sujeito contra o qual se declara o cometimento do crime de responsabilidade.
Significa dizer que, reconhecida a prática de atos que afrontem a lei lato sensu ou exponham a perigo a segurança nacional ou a estabilidade institucional, a punição é fixada de modo a alijar o infrator não só do poder, em razão de se ter achado em falta para o exercício de qualquer função pública, propósito com o qual não se coaduna a perda do cargo isoladamente.
Por essa mesma razão, a renúncia ao cargo não enseja o esvaziamento do objeto do processo de impedimento.
Melífluos sentimentos expressados pelos senadores-juízes que, no caso específico, decidiram pela segregação do castigo são argumentos imprestáveis para se minimizar a dor da perda do cargo de Presidente da República.
A construção desordeira do dispositivo constitucional se alastra para alcançar perímetros do submundo das intenções políticas, ocultas ou oclusas, para valer como precedente, em proteção àqueles que infidelizaram a Constituição e traíram a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, já firme quanto à incidência dual das reprimendas a que se sujeita aquele que comete crime de responsabilidade.
Vale recordar que o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do Mandado de Segurança n. 21.689-1/DF, verberou que, sob o regime da Lei n. 1.079/50, não é possível a aplicação isolada da perda do cargo, nem a inabilitação para o exercício de funções públicas tem caráter acessório.
Logo, as penitências se conjugam.
A decisão tomada pelo Senado Federal se recreia na infertilidade de sua eficácia ao atropelar a textualidade da regra e a jurisprudência do principal intérprete da Constituição, o Supremo Tribunal Federal.
A decisão foi mais do que uma excentricidade jurídica, porque a manobra construída fez mistura, sem sofisticação ou refinamento, do art. 52 da Constituição de 1988.
Houve equívoco na leitura da regra objetiva e clara, como se tratasse de laborioso e justificado tema a ser superado por artimanhas.
Reconhecido que a ex-presidente praticou crime de responsabilidade, não haveria outro caminho para o Senado Federal, senão a imposição da perda do cargo e da inabilitação para o desempenho de funções públicas.
O tema não pode ser partidarizado ou ideologizado para se afirmar solução que minimize a dor da perda ou se maximize a busca da proteção para reprodução em casos futuros em que políticos sejam alvejados pela lei com a perda do mandato.
O Senado Federal pode ser extravagante na interpretação da Constituição, mas o Supremo Tribunal não tem o direito de tomar a literalidade de um texto e transformá-lo em obscurantismo fantástico.
Em uma República democrática, cuidar da Constituição não se confunde com domar condões para recriar cláusulas e penas.