Herança maldita
Colégios militares alimentam resquícios da ditadura
Publicado
emO país chega aos 58 anos do golpe de 31 de março de 1964 num ambiente democrático, mas com sombras de censura – como a tentativa de calar artistas nas manifestações durante o Lollapalooza – e retrocessos flagrantes na política de direitos humanos. Dois especialistas no tema ouvidos pela Agência Pública, o ex-ministro Paulo Vannuchi, e a diretora executiva da Anistia Internacional, Jurema Werneck denunciam que, sob o governo do presidente Jair Bolsonaro, houve um deliberado desmonte dos mecanismos institucionais do direito à memória e à verdade construídos nos últimos 20 anos para restabelecer a realidade dos fatos ocorridos durante a ditadura e reparar as vítimas do Estado.
Para o ex-ministro dos Direitos Humanos e a diretora da Anistia Internacional, além de descumprir a Lei da Anistia, o governo e o Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos agiram intencionalmente no sentido de inverter o funcionamento da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Comissão da Anistia, antes sob responsabilidade do Ministério da Justiça, pasta mais adequada para lidar com o tema. Com isso interrompeu-se o processo de reparação e buscas para localizar os corpos de militantes políticos, que somam, segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV), 434 mortos e desaparecimentos nunca reconhecidos pelo regime militar.
“A Constituição de 1988 estabeleceu os parâmetros de como o Brasil deve funcionar. Infelizmente, a partir da campanha eleitoral de 2018, a gente tem visto o atual dirigente em confronto com essa visão. O que se vê em relação a esse capítulo é o descumprimento da legislação e da decisão que o Brasil já havia tomado em relação a herança militar”, completa Jurema Werneck, destacando que a Anistia Internacional se juntará aos movimentos que terão de agir de forma “consistente e insistente” para “recolocar o Brasil na restauração dos mecanismos de preservação dos direitos humanos”, interrompida pelo governo Bolsonaro.
“A memória, a justiça e a reparação são direitos estabelecidos. As Forças Armadas, que servem ao Brasil e se envolveram em graves violações, devem colaborar para recolocar o país no rumo certo”, diz a diretora da Anistia. Na véspera o ministério da Defesa e as Forças Armadas divulgaram nota chamando o golpe de 1964 de “marco histórico da evolução política brasileira”.
Responsável pelo maior acervo de direito à memória e à verdade organizado durante o governo Lula, Vannuchi destaca entre o desmonte da política de direitos humanos a paralisia e, em muitos casos, anulação dos processos pelo reconhecimento das vítimas da perseguição política. “Colocaram uma ideologia de ódio nas comissões e estão negando ou anulando processos sob o argumento de que os autores de requerimentos são terroristas. Não foi só lá. O Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, é gerido por um dirigente de clube de tiro (Ricardo Borda D’ Água de Almeida Braga cuja nomeação está sendo investigada pelo MPF)”.
Quando ministro, Vannuchi coordenou boa parte das investigações que resultaram na organização do banco de dados, inclusive com o DNA de familiares das vítimas da ditadura. “A orientação do presidente Lula tinha duas linhas básicas: encontrar corpos e abrir arquivos. A tarefa de punição dos violadores ficaria com o judiciário. Deixamos lá um trabalho intenso, que levou à CNV no governo Dilma, e se tornou irreversível. O momento é de virar essa página da história, mas isso exigirá tempo e esforço”, afirma.
Ele garante que todos os arquivos importantes com documentos sobre memória estão intactos e com backups muito bem guardados. “Superado o governo Bolsonaro, o Brasil precisará recuperar o que foi destruído. Mas houve, antes disso, um avanço institucional de preservar o que foi feito, o que significa que para prosseguir e concluir a destruição, Bolsonaro precisaria ser reeleito”, explica.
Direitos humanos
Werneck e Vannuchi chamam a atenção também para efeitos do rompimento de acordos internacionais com uma possível expulsão do Brasil das cortes internacionais de direitos humanos. “Todos os mecanismos que garantiam o direito à memória, à verdade e proteção social foram desmantelados, enfraquecidos ou estão sendo geridos por administradores desinteressados, para dizer o mínimo”, diz Jurema Werneck.
O ex-ministro avalia que até o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, os poderes Executivo e Legislativo adotaram medidas ou criaram leis para garantir direitos às famílias das vítimas da ditadura e punir os responsáveis. O problema, segundo ele, está também nas instâncias superiores do judiciário, que “constitucionalizaram” a Lei de Anistia. Todas as investigações realizadas até aqui, esbarraram, segundo ele, no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF), que anulam os processos e impedem a condenação de violadores, procedimento, segundo ele, que não resistirá por muito tempo.
“Os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário vão obrigar o país a retroceder no entendimento aplicado até agora. Mais cedo ou mais tarde as cortes internacionais vão forçar o STF a reinterpretar os crimes da ditadura de acordo com o entendimento e recomendações aplicadas no mundo, senão o Brasil será expulso dessas cortes e se tornará um pária internacional, como é visto atualmente o governo do presidente Jair Bolsonaro em função dos crimes ambientais”, diz o ex-ministro.
A ação penal em curso na Argentina para esclarecer o sequestro e sumiço do brasileiro Edmur Péricles Camargo, militante comunista retirado de um avião em 1971 e depois sequestrado por tripulantes de um avião da FAB é, segundo o ex-ministro, bom parâmetro sobre a forma distinta com que os dois países tratam os crimes da ditadura. “Na Argentina, houve o engajamento do poder judiciário contra o terrorismo de estado. O caso Edmur mostra que estamos defasados. Argentina, Chile, Uruguai e mesmo no Paraguai, não aceitam mais a tortura como procedimento em nenhuma hipótese. Aqui ainda é necessário dizer que não se pode torturar, executar, degolar, cortar cabeças, como se fez no Araguaia, que repetiu a barbárie de Canudos”, afirma. Paulo Vannuchi acha que as mudanças vão se dar pela internalização de medidas de punição que já são aceitas como regras em outros países, como funcionou no caso Augusto Pinochet, ex-ditador do Chile, preso por ordem do juiz Baltasar Garzón ao pisar em Londres, em 1998.
“Tortura não é crime político e nem pode ser considerado crime conexo. Crime conexo é quando um ladrão de banco rouba um carro para fazer o assalto”, exemplifica Vannuchi. “Tem que responsabilizar os violadores, mesmo que não se encontre mais nenhum deles vivo para colocar na cadeia”, afirma, ressaltando que os brasileiros precisam conhecer amplamente o que houve no regime militar e reforçar a consciência democrática para que ditaduras não se repitam.
Escolas militares
Para o ex-ministro, uma das primeiras tarefas do governante que substituir Bolsonaro será mexer no currículo das escolas militares. “A herança da ditadura tem de ser combatida com reforma profunda no ensino militar. É necessário entrar na Agulhas Negras (Academia Militar de Agulhas Negras), que é a fábrica de Bolsonaros e de Villas Boas (referência ao ex-comandante do Exército, Eduardo Villas Boas, autor da nota ameaçando o STF caso Lula fosse solto) e fazer uma mudança no ensino militar”, sustenta Vannuchi.
Uma reportagem da Pública, publicada em agosto do ano passado e assinada pelo historiador Lucas Pedretti, revelou que os ideais do Orvil, uma versão distorcida dos fatos ocorridos na ditadura criada pelos militares da repressão, circulou muito tempo depois da redemocratização e ainda reverbera no governo Bolsonaro.
Presas a um currículo ainda baseado em teorias de segurança nacional que miram o chamado “inimigo interno”, as gerações pós-ditadura, carregam o ranço do passado golpista e autoritário. O ex-ministro vê essas características inclusive no perfil do próprio presidente da República, um ex-capitão do Exército que além de elogiar um torturador, o falecido coronel Carlos Brilhante Ustra, disse que era necessário exterminar 30 mil opositores do regime militar.
“Se olhar direito, o Bolsonaro tem jeito de torturador. Só não foi porque, pela trajetória cronológica de sua carreira, não deu tempo”, cutuca Vannuchi, com a experiência de quem foi preso político e vê na falta de empatia do presidente com a tragédia da pandemia da Covid-19, que seria um reflexo psicológico de sua visão autoritária. “Não matou na ditadura, mas matou na pandemia. Ele poderia ter evitado muitas mortes com um mínimo de gestão eficiente do Ministério da Saúde”, afirma.
O ex-ministro chama a atenção para o fato de o presidente assumir como referência personagens que estiveram à frente da linha dura do regime militar, onde se enfileiravam extremistas do aparelho repressivo que e, já no esgotamento do regime, foram responsáveis pela morte do jornalista Vladimir Herzog, do operário Manoel Fiel filho e pelos atentados que tentaram evitar a redemocratização. Tanto o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República quanto Ustra, torturador e autor do livro de cabeceira do presidente, segundo Vannuchi, foram homens de confiança do general Sylvio Frota, demitido do comando do Exército pelo então presidente Ernesto Geisel por tolerar os crimes da extrema direita militar.
Vannuchi vê uma hipertrofia de militares no aparelho estatal, o que impõe ao próximo governo a tarefa de racionalizar o emprego de integrantes das Forças Armadas. “Na formação do governo Lula, quando visitei o Palácio do Planalto acompanhado de Gushiken (Luiz Gushiken, ex-ministro falecido) e Gilberto Carvalho (ex-ministro chefe da Secretaria Geral da Presidência da República), o Eduardo Graeff (ex-secretário-geral no governo Fernando Henrique) me falou: nós tiramos muitos militares do governo. Vocês vão precisar tirar mais. Tiramos, mas eles voltaram com o golpe dado por Temer e com a formação do governo Bolsonaro. Hoje há uma hipertrofia de militares no governo. Eles estão também no TSE e no STF. O rearranjo no próximo governo deve começar pelas Forças Armadas”, disse o ex-ministro. Para ele, a nova ordem na relação entre poder civil e militares será não tolerar mais episódios como o que ele chamou de “golpe tabajara”, o desfile de tanques pela Esplanada dos Ministérios no 7 de setembro do ano passado, uma demonstração de força de um presidente que flerta o tempo todo com recaídas golpistas.
A reforma no ensino militar, segundo o ex-ministro deve ser acompanhada de outras recomendações da CNV, como o reconhecimento e um pedido de perdão das Forças Armadas pela tortura e assassinatos praticados por agentes do regime em estabelecimentos militares. São dezenas de casos e investigações fartamente documentados e nunca negados. Um desses agentes, Sebastião Rodrigues de Moura, conhecido por Major Curió, admitiu em depoimento à Justiça Federal, que é verdadeiro seu relato num livro sobre sua biografia, que na repressão à Guerrilha do Araguaia 41 dos 67 militantes desaparecidos foram sumariamente executados depois de feitos prisioneiros. Por se tratar de crimes contra a humanidade, segundo o ex-ministro, esses agentes não deveriam ser protegidos e nem contemplados pela Lei da Anistia. “Será bom para as Forças Armadas separar o joio do trigo”, sugere.
Vannuchi destaca que o governante que suceder o presidente Jair Bolsonaro, terá uma enorme tarefa de reconstrução das políticas de direitos humanos que, embora interrompidas, devem ser retomadas a partir dos estágios de evolução deixados pelos governos Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e pelas 29 recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV) na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff. Além disso, a sociedade também terá de pressionar o judiciário. “A nova palavra de ordem terá de ser reinterpretação já”, prevê o ex-ministro.
Para ele, manifestações como as que ocorreram no Rio de Janeiro no último fim de semana, são sintomas de ansiedade por democracia. “O que houve no show do Lollapalooza, expressão da cultura, foi uma grande manifestação política contra Bolsonaro, uma fase de reencontro com a cidadania depois do isolamento imposto pela pandemia. Os manifestantes soltaram um grito que estava preso na garganta”, diz.
Fim da fila
Personificação retardada do regime militar, o governo Bolsonaro, não por acaso, recebeu da Anistia Internacional no Informe 2021/2022, uma das piores avaliações entre os mais de 154 países em que a ONG atua.
Embora violações tenham ocorrido também em outros períodos do regime civil, Werneck disse à Pública que em qualquer direção que se olhe sobre o que houve no ano passado, o governo Bolsonaro é um “retrato de negligência” no trato de direitos humanos: a fome voltou e atinge atualmente 20 milhões de pessoas; a gestão da pandemia foi uma tragédia, quando poderia, conforme estudos da ONG, ter evitado pelo menos 120 mil mortes com ações adequadas, mesmo antes da vacinação; aumentaram os assassinatos contra transexuais, com registros de 125 pessoas mortas, o que torna o Brasil o campeão absoluto de assassinatos de pessoas desse gênero, com quase o dobro do México, que está em segundo lugar com 65 casos; o eixo de assassinatos nos conflitos pela terra se deslocou para as comunidades indígenas, com 8 dos 26 assassinatos registrados.
“Houve também o aumento dos homicídios praticados por agentes do estado, de gente que usa arma em nosso nome e para nossa proteção. Eles mataram 6.416 pessoas, a maioria jovens negros de favelas e periferias. Nos Estados Unidos que, no mesmo período enfrentou o movimento “vidas importam”, a polícia matou 888, e já era considerado gravíssimo”, compara.
Jurema Werneck afirma que um dos maiores retrocessos foi na proteção à pobreza. “O Brasil já tinha aprendido a erradicar a fome, mas ela voltou. Em 2021 quase 20 milhões de pessoas passaram fome, com a grave ironia de que as comunidades tradicionais foram mais afetadas que a população em geral. Indígenas, quilombolas, ribeirinhos tiveram taxas de 12% de aumento na fome, enquanto na população pobre em geral cresceu 9%”, diz Werneck. Os conflitos pela terra na comparação com 2019/2020 aumentaram em 102%, segundo a diretora da Anistia, estimulados por um discurso oficial autorizativo às invasões, sobretudo em terras indígenas, que são protegidas pela Constituição.
“O que a gente levantou é que os conflitos são efeitos da negligência, com uma certa incitação das autoridades. Quando as autoridades enfraquecem os mecanismos de proteção da lei, verbalizam a iniciativa de “passar a boiada”, estimulando a grilagem de terras indígenas ou não titulam os quilombolas, é uma autorização para as invasões. É o retrato da negligência, porque é uma decisão de não fazer o que é obrigação das autoridades, uma violação explícita dos direitos dessas comunidades. O mundo olha e lamenta o que está acontecendo no Brasil”, afirma a diretora da Anistia Internacional.