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Começa contagem regressiva para homem ir embora

O paleoantropólogo José María Bermúdez de Castro reúne em seu novo ensaio, ‘Deuses e mendigos’, todo o seu conhecimento sobre a evolução da humanidade. Podíamos ter desaparecido como os neandertais”, afirma ele em entrevista à edição brasileira virtual do El País. Aos 68 anos, codiretor do sítio arqueológico de Atapuerca (norte da Espanha) e primeiro diretor do Centro Nacional de Pesquisa da Evolução Humana, reuniu décadas de pesquisa e reflexão sobre a origem da humanidade em seu novo livro, Dioses y mendigos (Deuses e mendigos, ainda sem tradução no Brasil), lançado em seu país esta quarta-feira.

Esse pesquisador, com uma ampla experiência arqueológica, desvia-se muitas vezes dos caminhos mais batidos neste ensaio que, como ocorre sempre que se fala do passado remoto da humanidade, deixa mais perguntas que respostas. Seu objetivo é percorrer todas as teorias sobre a evolução.

O resultado, como admite o próprio Bermúdez de Castro, acaba sendo “uma reflexão sobre a nossa existência”. Veja a seguir trechos da entrevista, feita por videoconferência.

Em seu livro, há um momento em que você defende que a única certeza sobre a evolução humana é que sobrevivemos, que estamos aqui, porque relata que houve muitos momentos em que estivemos à beira da extinção. Realmente é tão extraordinária nossa presença na Terra?

A única certeza que temos sobre nossa evolução é que a humanidade existe. Existe, mas poderia não existir. Poderíamos ter desaparecido como os neandertais. Tudo é muito aleatório. Passamos por crise tremendas. Podíamos ter desaparecido por qualquer razão, a que fosse: uma erupção vulcânica ou a endogamia. Entretanto, estamos aqui. Há uma coisa muito importante: somos os últimos de uma genealogia, de uma filogenia, uma única espécie. Tivemos uma filogenia muito florescente e houve muitas espécies humanas que conviveram ou coexistiram ao mesmo tempo na África, na Eurásia, espécies que estão sendo descobertas agora. Desse grupo restamos somente nós. Os neandertais provavelmente se extinguiram por culpa da mudança climática, por uma glaciação brutal, e tiveram um império. Como dizia um amigo cientista já aposentado, não somente estiveram na Europa e no Oriente Médio como também se banharam no Pacífico. E, entretanto, desapareceram. A glaciação que começa há 70.000 anos e termina há 29.000 foi terrível. Acabou com eles e acabou com os cro-magnons.

Isso quer dizer que acabou também com a nossa espécie na Europa?

Sim, assim como com os neandertais. Ou seja, nos expandimos para fora da África há 120.000 anos. Chegamos ao sul da China, a lugares tropicais, alcançamos o sudoeste da Ásia e a Austrália. Chegamos à Europa 40.000 anos atrás. E desaparecemos, fomos substituídos por outros sapiens, e estes por outros. Ou seja, somos descendentes de uma população bastante recente do Homo sapiens, que chegou no neolítico.

Então não somos descendentes dos humanos que pintaram as cavernas de Altamira, Chauvet e Lascaux?

Os humanos que pintaram Altamira não estão mais aqui. Embora sempre haja mestiçagem, possibilidade de hibridação. As populações não têm por que desaparecer totalmente. Os genes estão aí. Mas a maior parte dos genes que possuímos neste momento procede do neolítico.

Você defende em seu livro que não há uma origem única da humanidade, defendendo em vez disso a chamada hipótese asiática. Por que essa continua sendo uma teoria tão polêmica?

É uma hipótese que não está aceita pela comunidade científica, ainda que alguns colegas a defendam. Não se sabe exatamente quando ocorreu a divergência entre neandertais e Homo sapiens, embora a genética indique que foi entre 550.000 e 800.000 anos atrás. Estou convencido de que essa divergência não ocorreu na África, nem na Europa, e sim em um lugar intermediário, no sudoeste da Ásia, formado por estes países que conhecemos na atualidade como Israel, Líbano, Síria, Iraque, toda essa região. A origem do Homo sapiens está aí. Onde aparecemos como espécie? Na África. Daí se deduz que a origem de tudo é a África e que tudo sai da África. Alguns de nós estamos tentando sair desse impasse. Mas é muito difícil que um novo paradigma entre na comunidade científica.

Você sustenta que o momento mais importante da evolução humana foi o bipedismo, algo tão simples como começar a caminhar erguidos sobre duas patas. Entretanto, afirma que não está nada claro por que fizemos isso, que vantagem essa nova postura nos proporcionava para sobreviver. Seria esse o maior mistério do nosso passado?

Há pouquíssima informação, restam quatro ou cinco sítios arqueológicos com fósseis muito fragmentários que demonstram que fomos bípedes, mas nada mais. Começou-se dizendo que nos pusemos de pé porque saímos da floresta para a savana e tínhamos que olhar por cima do mato para ver se vinha algum predador. Mas se éramos tão baixinhos! Medíamos um metro, e a vegetação pode chegar a essa altura. Além disso, a postura bípede apareceu em áreas de floresta. Sabemos que surgiu há uns sete milhões de anos e que ocorreu quando ainda vivíamos na floresta, quando estávamos perto da linhagem dos chimpanzés. O problema fundamental é que, do ponto de vista da física, não se pode imaginar um ser que pudesse se movimentar pela metade, entre ser quadrúpede e ser bípede. Isso fisicamente não é possível. Mas é uma questão que continuará aberta enquanto não aparecerem fósseis, e isso é muito difícil.

De todos os mistérios acerca da evolução humana, qual mais o inquieta ou interessa? Como chegamos à Austrália 70.000 anos atrás, como povoamos a América? Acredita que a genética resolverá esse tipo de assunto em um tempo razoável?

A genética e a paleoproteômica [o estudo das proteínas antigas] esclarecerão muito essas coisas. A navegação me parece um tema apaixonante, surpreende-me muitíssimo. Mas provas são provas: se houver um sítio arqueológico na Austrália que tiver arpões e acúmulo de restos de atum, então não reste alternativa senão pensar que estávamos navegando há 20.000 ou 30.000 anos. E tivemos que navegar para chegar à Austrália, onde estamos há 40.000 ou 70.000 anos. Como saltamos para a Austrália? Como atravessamos esses mares que têm uma profundidade de 3.000 metros em alguns lugares? Não pudemos fazer isso a nado nem em uma travessia curta. É incrível a capacidade de nossa espécie de ir para lá, de fazer estas navegações tão incríveis. Tudo isso é surpreendente.

Esta conversa pelo Zoom e as primeiras pedras esculpidas por nossos antepassados remotos há 2,5 milhões de anos fazem parte do mesmo impulso para mudar o mundo com a tecnologia?

Sem dúvida. Pertencem a uma mesma inquietação da nossa espécie: a capacidade de criar. Há um momento inicial, que é quando começa a manipular a matéria prima. E a partir daí tudo foi uma cadeia consecutiva até chegar à atualidade, onde esse fenômeno se produz de forma exponencial. Isso é a cultura. E esse nicho ecológico é o que nos define fundamentalmente como primatas. O mais significativo do ser humano é a cultura, que abrange tudo —a política, os esportes…

O que é mais importante, a ideia de várias espécies humanas compartilhando o planeta, ou a ideia de que já resta apenas uma, que somos nós?

Há ao mesmo tempo uma unidade e uma diversidade incríveis em nossa espécie. O dramático da situação é que somos os últimos desta filogenia. Somos muitos, 7,5 bilhões de seres humanos, mas somos os últimos e estamos ameaçados de extinção por causa da mudança climática ou da superpopulação.

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