Desde que foi instaurada a Comissão Nacional da Verdade, a apuração de alguns dos mais paradigmáticos crimes do tempo da ditadura tiveram importantes desdobramentos.
O falso suicídio de Vladimir Herzog já não está nem mesmo nas sombras do registro civil. A violência contra ele praticada dentro do Doi-Codi hoje é parte integrante de sua certidão de óbito.
Na semana que passou, a Juíza Ana Paula Vieira de Carvalho, da 6ª Vara da Justiça Federal, do Rio de Janeiro, recebeu denúncia contra seis militares no caso Riocentro (entre os quais o general Newton Cruz), que pretendiam explodir bombas em um auditório lotado, quando se comemorava o Dia do Trabalho.
Deu errado, a bomba explodiu no colo de um dos agentes da ditadura. Mas só agora, 33 anos depois o fato chegou, com seus respectivos autores e mandantes, ao crivo da justiça. Que, no caso, tardou, em grande medida, porque a ditadura não permitiu investigações de si mesmo –inclusive com a cláusula de autoanistia aprovada antes da redemocratização.
Não foi o primeiro processo criminal que levou recentemente militares aos bancos dos réus.
A Justiça Federal de São Paulo já vem realizando oitivas de testemunhas na acusação sobre o desaparecimento de Edgar de Aquino Duarte, no qual é um dos réus o coronel Brilhante Ustra (também já declarado torturador em ação civil que tramitou pelo TJSP).
Nessa semana, deu-se a denúncia no caso Rubens Paiva, jornalista e deputado que, segundo a mendaz versão oficial, teria fugido depois de ser preso, em 1971, quando desapareceu.
Não se tinha muitas dúvidas sobre sua morte nas mãos da ditadura, mas o último fio da meada veio da própria Comissão da Verdade, em relato do coronel Paulo Malhães, que assumira participação em ocultação do cadáver e dias depois ele mesmo morreu assassinado. Representantes do Ministério Público Federal apontam como provas, ainda, documentos apreendidos na própria residência do militar.
Entre os detalhes sádicos, está o fato de que o deputado teria sido torturado ao som de “Apesar de você”, de Chico Buarque, que serviu como canção de protesto à ditadura. É uma pena que o amanhã não chegou a tempo para o próprio Rubens Paiva.
E a bem da verdade, também demora para nós.
Cinquenta anos depois do golpe que lançou o Brasil nessa aventura ditatorial de militares e civis e quase trinta anos após a redemocratização. Mesmo com esses primeiros tímidos passos, o Brasil é, sem dúvida alguma, um dos países mais atrasados do Continente no encontro com seu passado.
Conta para isso, de forma impactante, a decisão do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 153, que manteve, em 2010, íntegra a interpretação de que a lei da anistia também se estendia aos crimes dos agentes de Estado, tidos, sabe-se lá como, conexos àqueles pelos quais muitos militantes e guerrilheiros já foram julgados, torturados, condenados e presos.
Com o passar do tempo, viu-se, todavia, que a decisão do STF não era o ponto final na discussão.
Os representantes do Ministério Público Federal levantaram a arguição, com base em decisões do próprio Supremo em casos de extradição, que situações dos crimes permanentes (como os desaparecimento e sequestro), não estariam abrigados seja pela prescrição, seja pela anistia.
E em 2011, ao julgar o caso Araguaia, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, tribunal cuja competência o país voluntariamente reconheceu, assinalou a incompatibilidade da autoanistia e também da prescrição, em crimes contra a humanidade, como no caso de massivas violações de agentes do Estado à população civil.
Foi com base nesta decisão, que a CIDH afirma peremptoriamente que deve ser aplicada por todos os agentes do Estado (nos quais estão incluídos procuradores e magistrados) que a juíza Ana Paula Vieira de Carvalho aceitou a denúncia do caso Riocentro, trinta e três anos depois, afastando, principalmente a questão da prescrição. Como assinalou a magistrada, “(i) os crimes de tortura, homicídio e desaparecimento de pessoas, cometidos por agentes do Estado, como forma de perseguição política, no período da ditadura militar brasileira configuram crimes contra a humanidade; (ii) segundo princípio geral de direito internacional, acolhido como costume pela prática dos Estados e posteriormente por Resoluções da ONU, os crimes contra a humanidade são imprescritíveis.”
Não se sabe ainda exata a dimensão que a discussão tomará na justiça, mas é certo que a apuração dos crimes permitirá que o país não apenas reencontre seu passado como pavimente caminho para um futuro com menos violência.
Tem-se verificado que a violência policial é menor nos países que promoveram as responsabilidades das ditaduras, razão pela qual não se pode olhar os julgamentos apenas sob o viés punitivista.
Não há vingança, nem justiçamento no caso.
A apuração das responsabilidades tem a importante função de distinguir o papel legítimo do ilegítimo no âmbito da segurança pública.
Reprimir a violência ilegal do Estado ao cidadão, portanto, também é um elemento de contração do Direito Penal: significa estabelecer os limites que não podem ser ultrapassados para a garantia da democracia e dignidade humana, que a nossa Constituição impõe.
É importante assentar nossos limites, para poder distinguir homicídios de resistências mascaradas, torturas de interrogatórios policiais, linchamentos de atos de justiça.
É preciso convencer-se, enfim, que na luta contra o crime os fins não justificam os meios, até porque muitos meios são crimes também.
Marcelo Semer