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‘Como a vida é uma piada, devemos escrever sempre com bom humor’

Gilberto Motta nasceu e cresceu em um pequeno circo-teatro no interior de São Paulo. Formou-se em Jornalismo e virou repórter de rádio e TV, escritor e professor universitário. Aposentado, vive no que ele convencionou chamar de ‘pequena cabana’.

Essa cabana, na realidade, é apêndice de uma pousada na Guarda do Embaú, Santa Catarina. É lá onde ele escreve suas obras, com características próprias, recheadas, muitas vezes, de bom humor, ‘pois é assim que devemos viver’, afirma na entrevista a seguir:

Fale um pouco sobre você, seu nome (se quiser, pode falar apenas o artístico), onde nasceu, onde mora, sobre sua trajetória como escritor.

Sou Gilberto Motta: paulista caipira lá do interior, Sertãozinho, onde nasci quando o circo-teatro de meus pais passava pela pequena cidade. Cresci entre o picadeiro e palco até os oito anos. Com o golpe de 64, a vida de artistas populares de meus “apertou” e eles compraram um hotel em Tupã, onde vivi até os 19 anos. Daí para a capital, São Paulo, foi o caminho natural: cursinhos, vestibular e intenso envolvimento com os movimentos culturais, artísticos e com a política estudantil. Louco por cinema escrevendo desesperadamente.

Como a escrita surgiu na sua vida?

Desde que me lembro, quando ainda tinha o desejo de aprender a ler e a escrever. Inventava histórias e pedia para meu irmão e minha mãe escrevê-las. A coisa veio direta do circo, do lúdico, do prazer, do picadeiro, do palco e da música que a arte mambembe oferecia a um menino no começo da vida.

De onde vem a inspiração para a construção dos seus textos?

Penso que de duas vertentes básicas: do cotidiano – e aí entra o repórter/jornalista que sou ao longo da vida profissional-, e da literatura de invenção/ficção. Tenho também um pezinho na mirada narrativa das memórias, no cinema, na música, teatro. Sou fascinado por histórias orais.

Como a sua formação ou sua história de vida interferem no seu processo de escrita?

A primeira formação prática, no circo teatro, foi decisiva. Tudo era vivência lúdica, criativa e repleta de narrativas. Tive o privilégio de cursar comunicação social/jornalismo na Cásper Líbero de São Paulo; curso referencial com ótimos mestres educadores. E sempre lendo e escrevendo, experimentando vários gêneros. Da literatura, passando pelo teatro, letras de música e roteiros audiovisuais. Depois fiz o mestrado na UFSC e reinventei-me professor. Estou com 68 anos de vida e pelo menos a 55 venho trilhando esta estrada.

Quais são os seus livros favoritos?

Pois então, toda escolha termina por excluir. Vamos ficar na literatura brasileira: Grande Sertão: Veredas (Guimarães Rosa); Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis); Memórias do Cárcere (Graciliano Ramos); Incidente em Antares (Érico Veríssimo); Catatau (Paulo Leminski); Viva o Povo Brasileiro (João Ubaldo Ribeiro); Cem Anos de Solidão (Gabriel García Márquez); A obscena Senhora D (Hilda Hilst) e tudo de Drummond, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector e os contos de Tobias Barreto, Rubem Fonseca e Murilo Rubião, além das crônicas insuperáveis de Rubem Braga e Lourenço Diaféria.

Quais são seus autores favoritos?

Seis fundamentais: Machado de Assis; Guimarães Rosa; Euclides da Cunha; Clarice Lispector; Millôr Fernandes e Gabriel García Márquez.

O que é mais importante no seu processo de escrita? A inspiração ou a concentração? Precisa esperar pela inspiração chegar ou a escrita é um hábito constante?

Quando mais jovem, a inspiração era total; a base intuitiva, metafísica, surrealista mesmo. Com o tempo, a coisa foi sendo lapidada e o processo de reflexão, planejamento, método entrou no meu cotidiano. Há anos que aprendi m-e apreendi- a disciplina do “hábito constante”. Aquele lance de “99% transpiração e 1% inspiração”, entende? Mas não fecho como regra, pois procuro cultivar o meu lado anárquico como fonte de prazer e “juventude”. Sem transgressão não há literatura nem vida nem nada.

Qual é o tema mais presente nos seus escritos? E por que você escolheu esse assunto?

Acho que aquela mirada da incompletude, da estrada, dos seres – como eu (sic!) que vagam entre o nascer e morrer. Um breve sopro de tempo. Aprendi cedo, com Walter Benjamin e os poetas Beats o lance do “vagabundismo literário”. O cotidiano me fascina e me apavora. Depois que li Kafka, sinto que nunca mais deixei de ser uma barata tonta que trocou a caneta pelo teclado do notebook.

Para você, qual é o objetivo da literatura?

Provocar reflexões. Desconstruir para construir infinitas possibilidades libertando a imaginação. E o princípio do prazer, do choque, pois sem esses lances a coisa fica besta, sem sabor, sem graça.

Você está trabalhando em algum projeto neste momento?

Reescrevendo alguns contos e crônicas para viabilizar alguns livros jamais editados. Brigando todas as manhãs para concluir uma novela/ficção com referências históricas (“As Mãos de Guevara”) que escrevo desde 1997.

Quais livros formaram quem você é hoje? O José Seabra sempre cita Camilo Castelo Branco como seu escritor predileto, o Daniel Marchi tem fascinação pelo Augusto Frederico Schmidt, e o Eduardo Martínez aponta Machado de Assis como a sua maior referência literária. Você também deve ter as suas preferências. Quem são? E há algum ou alguns escritores e poetas contemporâneos que você queira citar?

Já falei aqui da metamorfose que vivi –e vivo- depois de topar com o Kafka. Creio que não viveria sem a literatura cinematográfica libertária de Fellini e de Glauber Rocha. A música e o rádio e suas crônicas faladas também marcam a minha formação. Cresci leitor de Gibís, dos jornais “nanicos” como o Pasquim, o Sol, Lampião, mas o que me desvelou o mundo fantástico e suas possibilidades foram os contos de Murilo Rubião. Tudo misturado com o sertão de Guimarães Rosa, sem dúvida.

Como é ser escritor hoje em dia?

Continua sendo um salto no trapézio sem rede de proteção. A canção “Beatriz”, de Chico Buarque e Edu Lobo resume bem o que digo aqui. Como diz a minha querida amiga e parceira escritora de mão cheia, Edna Domenica, “escrever é uma empreitada existencial desafiadora […], uma tarefa árdua, um afeto prazeroso, um ato de cidadania”. E concluo com o Rosa, na abertura do Grande Sertão: Veredas: “é o diabo na rua no meio do redemoinho”.

Qual a sua avaliação sobre o Café Literário, a nova editoria do Notibras?

Trabalho de fôlego e qualidade. São iniciativas literárias editoriais inovadoras nas plataformas digitais; um sopro potente capaz de oxigenar a nossa criatividade no desafio como narradores, contadores de histórias/estórias que é o que somos. Produtores literários solitários que através deste projeto nos reconhecemos e nos identificamos no outro, nos parceiros, no fazer coletivo.

Tem alguma coisa que eu não perguntei e você gostaria de falar?

Gostaria de lembrar, mesmo no contraponto da contradição, o fundamental exercício de coragem de seguirmos vivendo – e escrevendo – “sem perdermos o bom humor”. Sem ele, a barra fica fodásticamente piramidal e mais pesada.

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