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Como ‘Bright’ usa criaturas mágicas para falar sobre racismo

Foto: Divulgação/Netflix

Em uma versão alternativa do presente, orcs, fadas, elfos e outras criaturas mágicas existem e moram no mesmo mundo que nós, humanos. É claro que dividir o mesmo planeta conosco não daria muito certo, uma vez que não somos bons em fazer isso nem com nós mesmos. Bright, novo longa-metragem original da Netflix, examina essa conturbada dinâmica social — e põe logo Will Smith, um ícone da cultura negra, no papel de um racista.

No filme de David Ayer (Esquadrão Suicida), Smith vive o policial Daryl Ward, que tem como parceiro de viatura o orc Nick Jacoby, interpretado por Joel Edgerton (Loving). Ward detesta ter que trabalhar com um orc, que também vem a ser um agente corretíssimo. Jacoby quer se dar bem com Ward e se distanciar do estereótipo que seu povo têm naquela sociedade, na qual eles são frequentemente vistos como criminosos em potencial.

Bright, cujo roteiro é assinado por Max Landis — criador e roteirista da série Dirk Gently’s Holistic Detective Agency, da BBC/Netflix —, acompanha a dupla de policiais por um período de aproximadamente um dia inteiro. A ronda habitual de Ward e Jacoby nas ruas de Los Angeles traz algo inesperado: ambos encontram uma jovem e assustada elfa, Tikka (Lucy Fry), que está em posse de uma varinha mágica. De repente, os policiais se veem no centro de uma violenta disputa entre povos mágicos em busca da poderosa relíquia.

“É uma mistura de Dia de Treinamento com O Senhor dos Anéis”, diz Smith em coletiva de imprensa em São Paulo, no dia seguinte ao disputado painel da Netflix na Comic Con Experience (CCXP), no último dia 10. Na ocasião, Bright foi exibido em uma pré-estreia surpresa; o público ficou histérico ao final da exibição.

No encalço dos três está Leilah (Noomi Rapace), a líder dos elfos sombrios, grupo do qual Tikka foge. Os elfos estão tanto no FBI, como o agente vivido por Edgar Ramírez, quanto na elite criminosa liderada por Leilah. Os orcs são como tantos jovens negros que vemos na vida real, agrupados em gangues e ouvindo hip-hop, conscientes do ressentimento social em torno deles.

Durante os 117 minutos de filme, Bright apresenta elementos frequentes na obra de Ayer — que não por acaso é roteirista do aclamado Dia de Treinamento (2001), que deu um Oscar a Denzel Washington —, como a periferia marginalizada e envolvida no mundo do crime de Los Angeles. Há várias cenas de ação intensas, com tiroteios e mortes a rodo.

“Há tanto mal-tratamento um do outro”, diz Smith. “Há a necessidade de tratarmos uns aos outros apenas um pouquinho melhor.”

Joel Edgerton está em cena escondido sob uma espessa camada de maquiagem para interpretar Jacoby — foram necessárias três horas e meia por dia de preparação para se caracterizar fisicamente como um orc.

Jacoby vive um dilema um bocado complicado. Ele não quer ser associado ao estereótipo do orc criminoso e confinado a um gueto; mesmo sendo alvo de bullying dos colegas de corporação, ele quer mostrar seu valor. O que torna o personagem ainda mais instigante é o fato de que há um ator branco sob toda aquela maquiagem, no papel de uma vítima do equivalente ao racismo em nossa sociedade.

Segundo o próprio Edgerton, foi uma experiência curiosa dar vida a Jacoby: o ator veio da classe-média australiana, uma das melhores posições sociais no mundo todo, segundo ele próprio.

“Espero que [no futuro] a gente seja julgado pelas nossas atitudes e caráter, em vez de uma ideia pré-concebida de quem nós somos, baseada em como nos vestimos, para quem nós rezamos ou a cor de nossa pele”, defende.

Edgerton conta que pôde sentir na pele, pela primeira vez em sua vida, o que é isso. Smith, por sua vez, teve a oportunidade de saber como é estar do outro lado.

“Desde os meus 17 anos eu já fazia dinheiro, tinha carrões e sabia o que era ser atacado e perseguido pela polícia”, conta. “Estar do outro lado disso no filme foi interessante para ver o que acontece na mente de alguém que arrisca sua vida para proteger outras pessoas, inclusive algumas que os odeiam.”

Ward é rejeitado pelos próprios vizinhos negros, como mostra a cena inicial de Bright. Toda essa ampla, profunda e tensa fragmentação social no universo do longa desencadeia graves consequências — e Ayer conhece isso tudo muito bem. Ele mesmo já viveu em Los Angeles, em uma época na qual desemprego, criminalidade e formação de gangues cresceram juntos.

“Os elfos representam os que têm posses, e os orcs são os que não têm posses”, completa Smith. “A gente quis brincar um pouco com isso e com quem está no meio também.”

“Eu espero que as pessoas se divirtam com Bright e que o filme dê a elas coisas interessantes para dizerem. E espero que façam isso o suficiente para pedir uma sequência para a Netflix.”

Conversa é o que Ayer também deseja: “A gente quer que as pessoas curtam o filme, mas espero que as pessoas queiram dialogar sobre isso”.

Bright significa um novo passo para a plataforma de streaming. É o primeiro filme original dela com orçamento de padrão hollywoodiano — US$ 90 milhões, aproximadamente R$ 298 milhões, foram investidos na obra pelas produtoras Overbrook Entertainment (do próprio Smith), Trigger Warning Entertainment e Grand Electric.

A fantasia urbana nem precisou chegar de fato ao catálogo da Netflix para ter uma continuação confirmada. Na última quarta-feira (20), dois dias antes da estreia, a marca anunciou que haverá uma sequência.

Oportunidades para diálogo, pelo visto, não faltarão.

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