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Moça triste do lago

Como diria Riobaldo, em ‘Veredas’, é tudo pura imaginação

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Produção Francisco Filipino

Eram tempos mais amenos, em que adolescentes irrefletidos (como a esmagadora maioria deles) podiam se aventurar, à noite, por lugares desertos e pouco iluminados, confiantes na velocidade dos pés para escapar de um eventual perigo. Lourenço, 15 anos, costumava ir da praia de Icaraí até Santa Rosa, em Niterói, cortando pelo campo de São Bento. O trajeto não apenas era um pouco mais curto, mas incomparavelmente mais atrativo. Ele descartava os caminhos cobertos de cascalho e ia sobre a grama, respirando o ar puro, detendo-se por vezes junto a grandes árvores cobertas de cipós para balançar-se neles, como um Tarzan teenager. Mas isso se não houvesse testemunhas, adolescentes têm pavor do ridículo. E afinal saía do parque, cruzava a Estácio, enveredava pela Miguel Couto e chegava em casa, 15 minutos depois.

Certa noite, Lourenço caminhava pelo campo de São Bento, costeando o lago central, quando viu a moça. Era magra, não muito bonita, estava com um vestidinho simples e demonstrava uma tristeza infinita no rosto pálido. Parecia mais velha do que ele, no mínimo uns 18 anos (podia ser muito mais, Lourenço não tinha muita experiência em estimar a idade de uma mulher). Estava à beira do lago, olhando a água escura. Ela o chamou.

– Oi, moço. Vem até aqui, por favor.

Lourenço gostou de ser chamado de “moço”. Afinal, já era um homem, tivera sua primeira vez com uma profissional na zona. Apreciou também a delicadeza da jovem, o “por favor”. Aproximou-se devagar.

– É perigoso andar sozinho por aqui à noite, moço. Aqui só vêm os que já morreram, ou que vão morrer.

Era verdade, pelo menos a segunda parte da frase. Todo vivente vai morrer. Quanto à afirmação inicial, ele não acreditava em fantasmas. Em espíritos sim, sua família era kardecista.

O silêncio prolongava-se, já pesado, Lourenço percebeu que precisava dizer alguma coisa. Pensou em mentir (vá lá, exagerar), dizer que sairia na porrada com um assaltante, ou mesmo dois, porém optou por dizer a verdade;

– Se alguém vier me assaltar, saio correndo – falou. – Sou bem rápido –, acrescentou.

A moça deu uma guinada na conversa.

– Como se chama esse lago?

Ele parou para pensar. Era o laguinho do campo de São Bento, tanto quanto soubesse, não tinha nome. Mas improvisou.

– Lago de São Bento.

– E é profundo?

– Não sei, moça.

– Não faz mal – disse ela, dando de ombros. – Logo vou descobrir…

Era demais para Lourenço.

– Tchau, tenho de ir para casa. Minha mãe me mandou chegar cedo.

E saiu na disparada, antes que a moça pálida pudesse continuar a conversa.

(Foi só o que se passou. Se quiser, pare a leitura, vá cuidar de sua vida, fazer o que bem lhe aprouver. Mas, lembro, um conto não é uma ata, um registro de acontecidos. Então, por favor, continue a ler.)

Ao chegar em casa, Lourenço mal jantou e se trancou no quarto. Para remoer o que tinha acontecido – e fustigar-se por sua incapacidade de ajudar alguém.

“Eu devia ter perguntado o que aconteceu a ela”, pensou. “E falar coisas bobas, mas que ajudam nessas horas, tipo ‘Não há mal que sempre dure’, ou ‘A felicidade até existe’. Mas não, só respondi ao que ela perguntou, nem perguntei o nome dela, fui um bobo…”

Chegou à conclusão de que havia dois caminhos alternativos, duas explicações diferentes para a tristeza da moça do lago: problemas de dinheiro ou, mais provável, problemas de amor. Quanto à primeira, devia ter perguntado em que ela trabalhava, se estava desempregada; talvez até conseguisse levá-la para longe daquele maldito lago e ir com ela até sua casa, onde sua mãe poderia contratá-la para serviços domésticos ou indicá-la a amigas; se necessário, ele lhe daria o pouco que sobrara de sua mesada, sempre ajudava um pouquinho. Quanto à segunda possibilidade, devia ter flertado com ela (aos 15 anos, sabia como fazer isso), ter dito que ela era atraente e bonita (não era exatamente verdade, mas a sinceridade às vezes atrapalha) e se oferecer para substituir o traidor, se ela topasse namorar um rapaz de quase 18 anos (em certas ocasiões, mentiras vêm a calhar). Mas, imbecil desajeitado, não explorara nenhum desses caminhos, ficara mudo como um peixe…

Nos dias seguintes, Lourenço fez questão de não ler jornal algum, ou ouvir noticiário no rádio ou assistir pela televisão, vai que falavam do corpo de uma suicida encontrada em Niterói, no laguinho do campo de São Bento. Aos poucos, foi relaxando; e terminou por achar que a moça tristonha teria desistido de mergulhar nas águas sombrias e seguido seu caminho. E (quase) esqueceu.

Aos 15 anos, Lourenço gostava de ler, já havia descoberto livros de poemas e de crônicas, iniciava na época a exploração de Jorge Amado, Graciliano Ramos, Erico Veríssimo e outros romancistas brasileiros. Passaria quase uma década antes de se embrenhar nas páginas de Grande sertão: veredas, obra-prima de Guimarães Rosa.

Se já conhecesse esse clássico das letras brasileiras, Lourenço saberia como proceder em relação à moça triste do lago.

O primeiro passo consistia em retirá-la da beira do lago e colocá-la no meio do redemoinho. Vento e caminhos cobertos de cascalho provocam nuvens de terra, terra e água viram lama, a moça triste do lago (ou do meio do redemoinho) não merecia.

O segundo passo era substituir a expressão “a moça triste do lago”, com que pensava nela, por outros nomes, que o romancista reserva ao aliado/adversário do protagonista. Nomes em versão feminina. A capirota, a que-diga, a outra, a cuja, a tal, a tisnada, a temba, a azarape, a tristonha, a sem-gracejos, a que-nunca-se-ri, a não-sei-que-diga. Tudo para ir diluindo a ideia da moça, fazê-la pouco a pouco sumir do pensamento. Mas nunca a cramulhona, a arrenegada, a cã, a danadora, a suja, a coisa-ruim, a demônia, a diaba, a dema, que a moça triste do lago (ou do meio do redemoinho) não merecia.

O terceiro passo, o mais difícil, consistia no autoconvencimento. Era preciso afirmar, mil vezes por dia, que tinha imaginado tudo, ou que a tristonha, a tal, era um fantasma, uma alma penada. Até poder garantir – mesmo cheio de dúvidas, como o jagunço Riobaldo, o protagonista de Grande Sertão: Veredas:

– Solta por si, cidadã, é que não tem moça triste do lago (ou do meio do redemoinho) nenhuma. Nenhuma!

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