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Luz e sombra

Como em ‘Grande Sertão’, o Diabo existe? Cabe um pacto com ele?

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Não se sabe quando surgiu a laminazinha, nem por quê. Movia-se ao sabor do vento, alimentando sonhos e pesadelos, dúvidas e certezas. Lembrava uma pequena faixa de moebius, retorcida, quase diáfana, com símbolos semelhantes aos do yin yang, os princípios masculino e feminino na filosofia tradicional chinesa. Os poucos que a viram, ou antes, perceberam sua presença chamaram-na de luz e sombra. O que se sabe é que esteve (está) presente em todas as eras, em todas as partes do mundo.

Alguns preferiram designá-la como dúvida e certeza, com base em sua presença no cotidiano da grande maioria das pessoas. Um engenheiro, um trabalhador manual ou um cirurgião, por exemplo, não pode hesitar ao realizar seu trabalho: é preciso reforçar as estruturas da ponte, e usar a ferramenta adequada, para alcançar bons resultados. E quando a vida de um paciente depende do manejo correto do bisturi, a confiança no que se está fazendo é fundamental. Desse modo, a dimensão da certeza prevalece em muitíssimos exemplos da atividade humana.

Mas há outros tipos de práxis em que a dúvida, mais que necessária, é essencial. Teólogos como santo Agostinho e Lutero construíram suas concepções pouco a pouco, com avanços e recuos, em meio a um emaranhado de dúvidas – as mesmas concepções que hoje são afirmadas, com ruidosa convicção, por sacerdotes de todas as igrejas. Filósofos fizeram o mesmo, sempre abertos a questionamentos, próprios ou de seus pares, até estarem seguros de suas conclusões para apresentá-las em seus textos. A laminazinha esteve junto a todos eles, ora cintilando ao sol, ora mergulhada nas trevas, sempre girando sobre si mesma, a lembrar-lhes que luzes e sombras, dúvidas e certezas, são dimensões indissociáveis.

Foi junto a criadores de todos os matizes, pintores, poetas, romancistas e outros, que a pequena faixa de moebius encontrou seu solo mais fértil.

Os personagens de um romance precisam mesclar elementos sombrios e luminosos, sob pena de o texto virar uma pasmaceira, o Herói só realizando atos heroicos, o Vilão só fazendo coisas más, e por aí vai. E há muitos casos em que as dimensões de luz e treva se manifestam juntas – e então surgem criações inesquecíveis.

Vamos partir do Novo Testamento. Não importa, diga-se, que Jesus tenha ou não existido; o objeto em análise é o texto, bem real. O personagem que, em tantas passagens, anseia em estar junto ao Pai é o mesmo que, pouco antes de morrer, lastima-se por ter sido abandonado por Ele.

Testemunho lancinante da humanidade, da carne trêmula de Jesus, seus medos, suas dúvidas, sempre ligada (para os cristãos) a sua dimensão de filho de Deus. Para mim, trata-se de uma das passagens mais comoventes dos Evangelhos.

Um salto no tempo e espaço: a Monalisa, de Leonardo da Vinci. Seu ligeiro sorriso representa o quê? Modéstia, ironia, representação pura e simples das feições da modelo? As discussões se estendem por séculos, enquanto a tela continua a nos fascinar. Outro salto, dessa vez recuando no tempo: as tragédias gregas. Talvez o melhor exemplo seja Antígona, de Sófocles, em que se mesclam obrigações irreconciliáveis para com a família e os deuses e as exigências da pólis, da sociedade e do poder constituído.

Agora é a vez de Hamlet, obra-prima do inglês William Shakespeare. A sede de vingança do protagonista é indissociável de suas dúvidas e hesitações, e é essa junção que tornou a peça teatral inesquecível.

Mais um salto, dessa vez para o Brasil. Em Dom Casmurro, Machado de Assis afirma, ou melhor, insinua a traição de Capitu com Bentinho. Insinua, porque a ambiguidade, a dúvida, é mantida ao longo do texto, e gerações seguidas de leitores e críticos literários discutiram (e discutem) se houve ou não houve a traição.

E então chegamos a Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, com sua torrente de dúvidas. O diabo existe? Pode-se fazer um pacto com ele? O protagonista/narrador, Riobaldo, fez o pacto com o Coisa ruim? Onde está o sertão, nas lonjuras, ou dentro de nós? Sem falar no fio condutor do romance, o amor tantas vezes negado, tantas vezes afirmado, entre Riobaldo e seu amigo Diadorim. Em todos esses casos, e em muitíssimos outros, a laminazinha deve ter cintilado e se escondido, num incessante vai e vem, pastoreando sonhos.

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