Curta nossa página


O suicida

Como janela indiscreta no carnaval, vê o corpo inerte do folião no chão

Publicado

Autor/Imagem:
Hannah Carpeso - Foto Produção Irene Araújo

Da janela, debruçado, aprecia a vista.

Olha o cenário do mar que se perde na paisagem, e que, nele, promove um sentimento de vazio. Só água e céu. Limite confundido.

Olha as janelas vizinhas abertas – indiscretas – revelam segredos, intimidades. Despidas do pudor e do medo, permitindo ousadias aos voyeurs. Fecha os olhos.

Não os quer.

Volta o olhar para baixo, em direção ao chão. Não da casa, mas da rua. Da janela, não a vê, porque está coberto pela multidão.

Gente como formiga, apinhada no movimento da agitação.

Carnaval de rua: formigueiro desordenado sem causa, sem razão; cultura cultivada para vomitar violência e opressão. Carnaval: coisa que brasileiro gosta e não abre mão.

Do alto da janela, convive com sua esquizofrenia. Quantas vezes voou com as nuvens, impedido pelo vidro fechado, trancado por cadeado protetor de sua euforia? Suicida diagnosticado.

Hoje a janela está aberta, sem tranca e sem cadeado. É carnaval! A folia o espera, pois a certeza de estar medicado o liberta.

Blocos passam abaixo, coloridos. Seguem movimentos diversos conforme os sons.

Na sua mente doentia, viaja e se sente músico a tocar com os foliões.

Primeiro abraça a percussão e segue um axé arretado; bate tão forte o atabaque, que o rompe.

De dentro, pulam foliões – do mesmo jeito que pipocas, esparramadas em volta da panela de pressão -, que a rua se transformou, espremendo a multidão.

Cada pessoa, um milho em explosão. Uma visão.

Conturbado, pega o pandeiro escolhido pelos dedos ligeiros, buscando acompanhar o frevo.

Mas seus olhos estão fixos no bloco que vem após. Som martelado, bate-estaca que o atinge – um cravo no seu coração.

Sente-se vampiro, atingido por baqueta de agogô. E volta às costas para janela, em busca de um novo instrumento, fugindo da sensação de horror.

Nisso, fogos de artifícios pipocam como tiros de espingardas. Em sua mente afetada, foi atingido de modo fatal.

E as notas da música, compassadas no ritmo repetitivo, ecoam na sua cabeça, cada vez mais forte… Quando começa a sentir indução à violência.

Palavra a palavra, frase a frase. Composição que pretende revelar realidade de periferia; fantasia misturada na alegria de Momo. Um convite à rebelião.

E as vozes. A repetição sonora. A baqueta e o tiro da bala de prata cravada no coração. Vampiro imortal se lança da janela sobre a multidão.

Ávido de sangue, suicida, deseja ser músico – eterno folião.

Enquanto o corpo despenca solitário, o funk canta sua violência em brados, sem saber que, em breve, será abalroado por um corpo que cai no ritmo proclamado.

E no baque do ruído do corpo a estalar no chão, poucos perceberam o vampiro imortal que se desfez no asfalto sem calar o carnaval.

O vazio cresceu ao redor, não como o azul ou verde do cenário do mar, mas como uma mancha vermelha que tingiu a calçada de pedra portuguesa. E há quem diga que foi performance carnavalesca!

Enquanto o bloco passava, o corpo jazia desprezado pelo axé tocado. Sufocado pelo funk que já passara e recebido pela rainha da bateria de uma pequena escola de samba que desfilava.

Ainda ficaria ali por muitas horas e ouviria um banjo de lamento de um jazz de algodão: cantilena de escravos, que evoluiu para um desarranjo intelectual de metais que busca, no experimental, novas canções.

Porém, um bandolim se aproxima, sentado num banquinho de madeira. Toca um chorinho amigo que tenta acalentar o sofrimento ou, pelo menos, cantar junto à dor de corno e de lamentos… de quem imagina suicídio como um ato de desespero de amor.

Corpo inerte, esquecido, já não é mais atenção. Dá espaço para os anjos virem em socorro.

Suicida… Esquizofrênico… Inocente vontade de ser músico folião tem, por fim, sua redenção.

Nem vampiro imortal, nem baqueta no coração… Simplesmente asas a voar como nuvens, em busca de compreensão e salvação.

Chegam músicos angelicais com sonatas, líricas valsas, em suaves canções. Mãos dadas o levantam. Caminham em direção à luz. Passam por túnel escuro, abrem-se portões. E, ao som de Wagner, é acolhido com marcha triunfal.

Suicida aqui é condenado; lá, foi acolhido como músico folião astral.

Afinal, suicida, no carnaval, é um ato de coragem ou não.

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2024 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.