1.
Era o final da estação. Passado o verão, veio o tempo de guardar o varão. Tantas travessias entre o rio da Madre e a praia da Guarda nesses anos todos de batalha. Varão e barco chegaram ao descanso a espera do inverno. João Jonas levava consigo um sentimento misturado: um pouco de alegria pelo trabalho realizado, um pouco de frustração pelo que poderia ter feito melhor. João era assim, Jonas como lhe dissera a avó desde menininho:
“… tem que ser o melhor, o perfeito, João! Você não é só João; é Jonas, aquele que foi engolido pela baleia e depois de anos voltou”.
Aquele fim de tarde parecia especial. João trouxe o barco fincando o varão no leito do rio como se fosse a primeira vez. A cada fincada sentia a mão do tempo na memória de quando começara na lida das travessias com o pai, João Samuca. Calmamente encostou a canoa na beira da areia e saltou com os pés firmes no continente da Guarda.
“…devagar, com calma, sem pressa, João…o pai ensinou que deve ser uma coisa de cada vez”.
Na faixa de areia branca, as meninas do Baque da Guarda, grupo de folguedo de Maracatu já levava a música e as danças animando nativos e turistas. João carregava no peito o sentimento do dever cumprido. Sempre um Jonas sobrevivente no interior da baleia. Mas outro sentimento tão mágico e profundo gritava ainda mais forte, o amor pela morena-jambo,
Lucinda, a rapariga mais faceira daquelas bandas:
“… desde Pinheira, Gamboa, Morretes até a Praia do Rosa, o amor dos olhos d’alma, do azul do céu, do dourado do Sol, minha vida, luz e alma, visse?!”.
2.
Como de costume, a avó, dona Jacinta, tida como bruxa-feiticeira de respeito, o aguardava na chegada do final do dia. Ela retirou as duas guias do pescoço e colocou no pescoço de Jonas. Ritual local de amor, gratidão e proteção. Neste momento, uma das guias se quebrou espalhando as contas na flor d’água do rio raso misturado com a flor de areia que já se agarrava aos pés de Jonas.
“… estranho… muito estranho … a guia quebrou sozinha sem que eu forçasse … estranho…”.
Jonas sorriu, como sempre. Beijou a avó e firmou-se na prainha do rio da Madre apoiado em seu fiel varão. O Sol já caia na serra do continente quando Lucinda veio dançando um ponto de Maracatu insinuante e bela.
3.
Em meio ao beijo contido -pois público- e ao lado da avó, a segunda guia de Jonas partiu-se e as pequenas contas esparramaram-se pela areia. A avó Jacinta a tudo via e nada dizia.
“…estranho… alguma coisa está fora da coisa… as duas contas de Jonas quebradas… assim…do nada?!”.
Jonas nem percebeu. Abraçado com Lucinda, seguiu dançando e cantando novos pontos do Maracatu. Mestre Tininho dava o mote e improvisava versos sobre o amor, o tempo, a ilusão e a solidão. E assim foi-se fechando mais um verão.
4.
Naquela madrugada, a avó Jacinta não esperou o galo cantar. Todos dormiam na casa e ela seguiu para o costão de pedra. A velha senhora tinha conhecimento profundo da natureza e atuava há três gerações como curandeira, parteira, guia espiritual de todos na pequena aldeia de pescadores. Pela trilha até o costão, seguiu descalça levando o embornal trançado no peito e dentro pedrinhas do mar, cristais e sete ervas mágicas: Alecrim, Artemísia, Sálvia, Menta, Lavanda, as ervas mais “suaves”; e duas ervas “pesadas”, Arruda e Comigo-ninguém-pode. Após subir a primeira escada de pedras do costão, vó Jacinta mirou a Lua cheia iluminando a noite, retirou as ervas “suaves” do embornal e foi abrindo os caminhos até a beirada do costão onde as ondas do mar estouravam em força e movimento. Permaneceu em silêncio por algum tempo e só então iniciou as rezas e os cânticos. Ao final da primeira parte do ritual, ela tirou os pequenos frascos com as duas poderosas ervas para a “bruxaria verde”. Um grito de Mau-agouro da rasga-mortalha, a coruja do mar, ecoou pelo costão trazendo arrepio e fascínio na noite praieira.
5.
João Jonas só tinha olhos para Lucinda. Amores da infância e prometidos pelas famílias para o casamento, filhos e união em tudo o que interessasse aos pais e avós. Costume nativo. Na verdade, eram bem mais amigos adolescentes que foram se acostumando à convivência imposta e ainda sem descobrirem o desejo sexual. João Jones bem mais ingênuo e rapagão; Lucinda mais faceira, fogosa entrando na fase menstrual e dos delírios “sem razão”. Com Jonas, corria pelas praias, nadavam juntos, rolavam pelas dunas e faziam toda forma de brincadeiras como se estendessem a infância vivida juntos. Mas naquele final de verão, o novo se encarregou de trazer as mudanças que sempre chegam. Lucinda foi fisgada pelo olhar do jovem Roberto, filho do patrão-dono-dos-barcos do vilarejo, que estudava na capital e voltou para as férias de verão. Vó Jacinta já sabia do destino e do arranjo que a vida se ocupa de fazer nestas circunstâncias. Daí as providências de salvação e justiça.
6.
A velha senhora chamou a proteção das forças, jogou as ervas poderosas ao mar e entoou o cântico decisivo:
“… mandaram para mim a coruja me visitar… eu te chamo Mulambo para me ajudar… quem com ferro será ferido… a maior traição é quando vem de um amigo…tranca essa porta e abre as estradas…”
A Lua se escondeu. A noite virou breu. O mar, ainda mais revolto, no costão bateu.
A coruja rasga-mortalha gritou pela madrugada.
Vó Jacinta resmungou as suas rezas e depois emudeceu.
Garrou o caminho de volta e tudo o mais aconteceu.
7.
Pela manhã, no bar do Maneca, o comentário era geral:
“…visse só… estranho que o patrão Agenor saísse pro mar e ainda no final do verão… ele não entrava em barco fazia tempos… o que que deu na cabeça do abestalhado para querer sair sozinho com a canoa e entrar em mar aberto?… eu ainda disse pra ele que eu ia junto, mas não… homezinho teimoso, turrão… estranho… muito estranho…”
O corpo do patrão Agenor jamais foi encontrado.
O mar engoliu.
Anos depois, no início de outro verão, João Jonas e Lucinda se casaram na igreja de Nossa Senhora de Fátima e foi uma festança de arromba na comunidade.
Vieram os filhos e João gostava de contar as histórias da avó Jacinta para eles, especialmente a de Jonas, aquele que foi engolido pela baleia nas páginas bíblicas, sobreviveu e voltou para o mundo dos vivos.
Vó Jacinta já havia morrido tempos antes.
E foi enterrada com o seu embornal das sete ervas.