Tradições antigas
Como os lobos, o viço dos velhos adormece, mas o vício não desaparece
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emO mundo mudou. Dizem que evoluiu. Pois está aí a minha birra. E ela não cessa. Interessante em 95% das coisas, mas em 5% essa tal de evolução só atrapalhou os planos e o dia a dia dos mais velhos. É verdade que não temos mais carros do tipo carroças circulando nas ruas. O celular, os computadores, os laptops e afins melhoraram a vida de todos. Por meio dessas modernidades, hoje qualquer um vende, compra, aluga, troca e empresta móveis, imóveis, veículos, eletrodomésticos e dinheiro.
Como estagiário da tecnologia, ainda não alcancei quase nada do que é novo. E olhem que o que acho novo já está ficando velho. Sei disso. É claro que o bom superou o ruim. Por exemplo, os meninos deixaram de fazer cirurgia de fimose com cortador de unha. As meninas aposentaram a calculadora a pilha para calcular o período fértil. Agora, além de mudar de canal, a Alexa (para mim é a Rebeca) avisa se a época é boa ou não para um psirico. Como o atual modismo é baixar e gravar músicas usando as plataformas digitais, o K-7, o CD e o DVD foram parar na lixeira.
Muito pior ocorreu com o clássico Brasileirinho. Poucos se lembram do chorinho do cavaquinista Waldir Azevedo, cujos acordes acordavam a molecada nos domingos de manhã. Era hora de esticar a minhoca, de se preparar para a pelada e de anunciar no microfone dourado a quermesse no mosteiro da Matriz. Nada de moças sem roupa ou do mosquiteiro da meretriz. Tudo era mais sagrado. O Brasileirinho foi substituído pela chatice de um tal Brasileirão Betano, comandado por técnicos portugueses e argentinos, cuja base baseou a praga dos jogos de aposta pela internet.
Mesmo ultrapassado, não me contento com o troca-troca, com o bafo-bafo sem o boca-a-boca ou com o pererecamento eletrônico sem o tête-à-tête, isto é, sem parceira. Sou do tempo em que as senhoras labutadoras da Vila Mimosa ensinavam que bater coxa era o primeiro sinal de que haveria os finalmentes. É claro que, antes disso, os entretantos também eram muito bons. Termo pouco usual nos dias de hoje, descabelar o palhaço não tinha nada de virtual. O manuseio era mano a mano e, ao fim, pato no tucupi ou requeijão no tacacá. De sociológico apenas a viagem mental e o quantitativo de alcovas em que o pincel ajudava nas numerosas pintadas.
Ainda não havia o fogão Dako. Por isso, ninguém maculava a marca dizendo que Dako é bom. A preocupação maior era com o azulejo, com o rosalejo e com o vermelejo. Bastava um pingo para um dia inteiro de limpeza com balde e brocha. Reitero que convivo tranquilamente com a modernidade. Entretanto, não há como negar que, às vezes, me sinto como um Maverick V8, automóvel da Ford que saiu de linha em 1979. A saudade do possante só não é maior em função das piadas com o bólido da Ford que iluminou as ruas do Brasil no século passado. Dizem as más línguas que, depois dos 50, a gente fica igual a um Maverick: já foi bonito, já esteve na moda, já foi potente, mas hoje só bebe. Inveja realmente é uma merda.
Pelo menos mantenho as tradições dos antigos. Cubinho de caldo de carne e Sazon só serve para temperar o que outro vai comer. Meu negócio é com o sal. Sou daqueles que, após pegar a leitoa, não deixam nada de fora. É água no pé, vinagre na orelha e pimenta no rabinho. Pronta a feijoada, o resto ninguém tasca, pois eu vi primeiro. Como o circo vai pegar fogo, me permitam fechar a casinha antes que a burundanga se manifeste e o Tonho comece a apitar sem a primeira salivada. É nós igual ao velho lobo. O tempo passa, o cabelo embranquece, a barriga cresce, o biscoito amolece, o bolso desabastece, a vista escurece e o viço adormece, mas o vício não desaparece.
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*Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras