Tempos modernos
Como viver nossas duas personalidades de cada dia
Publicado
emAndo meio cismado comigo mesmo. Pior do que isso. Ando preocupado com meu futuro de macho alfa. Antes de qualquer ilação maledicente, deixa eu me explicar: não mudei nada. Continuo com minhas convicções heterográficas, heterogêneas, heteroclubísticas, heterolatinas, heterocaninas, heterocopistas e, principalmente, heterodisíacas. Pretendo morrer com elas. Está aí o problema. Não afirmei que vou morrer com elas. Fiquei em cima do muro. Na minha terra, ficar sobre o muro significa que, um dia, você pode cair à esquerda, à direita (Deus me livre), ao centro ou então esfacelar-se na dúvida do fatídico, delirante e heterosingelo quem eu sou. Meu entendido psicólogo, não me disse exatamente o que vivo, mas não me sinto mais desse mundo.
Vivo nele, mas parece que ele anda meio cabreiro com nosotros. É isso mesmo. São os tempos modernos, no qual, em se tocando, tudo dá. Não adianta rir, pois tenho certeza de que, independentemente do bigodão, da barba de viking e do físico de halterofilista, você também tem sofrido do mal século: a dupla personalidade. Mesmo não querendo saber e, às vezes, abominando a ideia, hoje homens e mulheres têm duas personalidades, ou seja, convivem com os dois gêneros. Experimentei e tive a certeza da existência desse fenômeno durante recente consulta com o psicólogo. Disse ao doutor que estava preocupado porque de dia pensava como homem e à noite agia como mulher. Dormia e amanhecia como mulher e anoitecia como homem.
Após dois minutos e meio de entrega e de um silêncio intrigantemente abusivo, perguntei ao médico: É sério? É mesmo um problema de dupla personalidade? “Sim”, respondeu o moço. “Sente-se mais próximo e vamos conversar os quatro”. Me assustei, mas entendi rapidamente a gravidade da situação. De imediato, pensei na catastrófica possibilidade de uma personalidade acabar tropeçando na outra. Só relaxei depois de consultar a consciência e ouvir que meus dois lados são bons. Ufa! Que bom que minhas personalidades não se confundem com minhas atitudes. As primeiras determinam quem eu sou, enquanto as atitudes dependem exclusivamente de quem meu interlocutor é. Simples assim.
Voltando às cismas sobre o mundo de hoje, normalmente me sinto agindo, pensando e sendo avaliado como extraterreno. Não tenho e, portanto, não permito que ser algum penetre no meu Facebook, Youtube, Twitter e Instagram, tampouco no Linkedin e no Tik Tok. Aliás, no meu Tik ToK ninguém jamais tokou. Nem mesmo o doutor. Mal e porcamente, faço uso diário do zap zap. Nem por isso estou desatinado. Ao contrário. Normalmente, fico estupendamente patético com coisas que leio e vejo. Por exemplo, recebi dia desses um zap clandestino, impessoal e anônimo. Não me interessei pela identidade do autor, mas sim pelo conteúdo. O sujeito exigia respeito, embora se identificasse como homem cisgênero, semibissexual, demiromântico, poliamoroso, ninfomaníaco e destranscionado. Nunca tinha ouvido falar dessas novidades, mas, entre confuso e perdido, não tive dúvida quanto ao fim da charada: o amigo é frequentador da Igreja Presbicheriana.
E daí? Que mal há nisso? Sou fascinado por uma boa rabada, uma buchada de bode, uma mocotozada e uma anguzada, mas também me derreto por um toddynho ou por um iogurte de morango com polpa de frutas. Questões de dupla personalidade. Temos de conviver em conformidade. Por exemplo, vira e mexe meu lado roqueiro dos anos 50 e 60 bate de frente com a sensibilidade aguda do outro, que é fã raiz do caipira vestibulando, ritmo precursor do sertanejo universitário. Por isso, ao mesmo tempo em que ouço Johnny Rivers, Elvis Presley, Creedence Clearwater Revival, Little Richard, Pat Boone e Chubby Checker, me surpreendo com minha sombra ouvindo Zé do Cedro e João do Pinho, Sorriso e Sincero, Patrão e Funcionário, Feitiço e Feiticeiro, Fulano e Ciclano e, a melhor delas, Nem Ly e Nem Lerey.
Pelo menos nos damos bem à mesa. Nada de pintado, pilombeta, dourado, piaba, piquira, lambari, tambica ou picanha. Só como coisas fortes como cupim, lagarto, rabo, robalo, bicuda, lombo, coxa, pirarucu e língua. Reverto a gripe e a febre de 39 graus com doses cavalares de ximbica e limão galego e, à noite, uma porção quente de quebra-pedra com gengibre do Cerrado. Chá de picão ou de pau pereira nem pensar. Admito minhas duas personalidades, mas normalmente uso a melhor para conquistar diariamente minhas quatro mulheres e para agradar meus amigos do coração. Inconcebível é agir como aquele moço que se achava mito e que passará para a história como o pior presidente que o Brasil já teve. Ele tinha duas personalidades. O problema é que a mais perfeita sempre esteve presa às redes sociais. E de lá nunca saiu. Por isso, saíram com ele.
*Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras