Depois do período farisaico-bolsonarístico, tardiamente iniciamos uma nova era no Brasil. Os aiatolás sunitas de toga resolveram peitar os talibãs xiitas do arbítrio, das ameaças antidemocráticas, dos xingamentos e das fake news. Agora, a ordem é apocalíptica: bateu, levou. A defesa antimísseis do Supremo Tribunal Federal está ativa desde a sexta-feira (20), minutos após o lançamento do fracassado balístico palaciano contra o ministro Alexandre de Moraes. Apoiado por todos os pares, o alvo sequer chegou a ser atingido. O escudo antiaéreo interceptou o foguete do impeachment do calvo e bem intencionado magistrado antes que ele conseguisse cair no colo do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Como estava anunciado, o resultado do feitiço acabou voltando para o feiticeiro. Ficou o dito pelo não dito e o pedido de impeachment acabou na lixeira.
Mais uma vez (talvez a décima em uma semana), o disparador de torpedos emperrou. O estrago está feito. Além de lembrar que as decisões de Alexandre Moraes são referendadas pelo plenário da Corte, ou seja, que ele não está só, o Scud do STF explicita a intolerância dos homens de preto ao moço que um dia perdeu a farda a bem do serviço público. Pior foram os estilhaços que surgiram do Senado Federal, casa do Congresso onde são julgados pedidos dessa natureza, aliás o primeiro contra um ministro da Suprema Corte. Claro que até cadeiras empoeiradas do Palácio do Planalto sabiam que iniciativas como essa não prosperariam. Mesmo assim, como disse nosso coroinha Renan Calheiros (MDB-AL), a atual democracia tem de conviver com desvarios similares.
Distribuidor de hóstias e de vinho amargo na CPI da Covid, Renan foi enfático ao afirmar que o ataque do teólogo do mal foi a gota d’água para os democratas. Sinceramente, não sei o que pode ser feito para conter o mito. No entanto, tenho certeza de que a máxima de boa parte dos congressistas é romper o diálogo com quem só ambiciona o confronto. Isso talvez signifique a ingovernabilidade, o que não será novidade alguma para um cidadão eleito que ainda não aprendeu a usar os dedos das mãos para contabilizar o absoluto fracasso de sua administração. São quase 580 mil brasileiros abatidos por uma “gripezinha” sem importância e negligenciada até hoje, 14 milhões de desempregados, cerca de 20 milhões de famintos, uma inflação que começa a galopar e a gasolina que sobe diariamente como os aviões de carreira
Guardadas as devidas proporções, sou obrigado a rever alguns conceitos e admitir que o Haiti é quase aqui. Resumindo mais essa cortina de fumaça do presidente para esconder o desastre administrativo que representa, nunca tive dúvida de que o justo destino do pedido contra Moraes seria a mumificação no arquivo morto do Senado. Sua excelência que depende de votos para permanecer no poder ainda não percebeu que ninguém está acima das leis. A lata de lixo da história está abarrotada de poderosos que atentaram contra elas. A democracia é um bem inalienável. Desde que o mundo é mundo, todos que tentaram negociá-la arbitrariamente experimentaram a execração pública, o desprezo, o ódio e o esquecimento do povo. Podem até ter algum êxito temporário, mas um dia serão cobrados.
Muitos já foram e, por conta do que fizeram, ainda hoje são adjetivados de antidemocratas nos textos publicados no Wikipédia. A cronologia da política brasileira tem a obrigação de incluí-los, mas nunca os perdoarão. E será assim com os que agirem em desfavor da massa. Serão eternizados pela malquerença do povo. E não adianta tentar criar novas bandeiras mobilizadoras para a militância. O fim está próximo. Último livro provavelmente escrito pelo evangelista João, o Apocalipse descreve visões aterradoras para o período pós-mito. É como se fosse um filme de terror tendo como tela de projeção o céu. Há cavaleiros assustadores espalhando fome, guerras, peste e mortes, muitas mortes. Não é mera coincidência o que vivemos no Brasil das milícias digitais e das ameaças diárias de golpe.
Claro que não faltam anjos, muitos anjos, alguns tocando trombetas e anunciando castigos e catástrofes contra aqueles que não contarem com a marca do selo de Deus. Esses desejarão a morte, mas a morte fugirá deles. Conforme o português bíblico, o inferno é aqui. A verdade é que o presidente da República perdeu uma ótima chance de provar que eu e as torcidas do Flamengo e do Corinthians estávamos errados sobre seu incontido desejo de se perpetuar no poder, mesmo sem dispor de votos. O eco de suas palavras já não soa tão forte nas cabeças xiitas como antes. O Estado Democrático de Direito não tolera fariseus. Portanto, assim como o pedido de impeachment contra Alexandre de Moraes, que agiu dentro da legalidade, a chance de a ilegalidade dos anseios do líder do governo prosperar é próxima a zero. Candidatíssimo ou não, Rodrigo Pacheco, o super Pachecão mostrou ao mundo que o mito jamais teve a primeira ou última palavra no Brasil.