Sudoeste
Confusão por animal em condomínio acaba em café e biscoitinhos doces
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Juiz de direito, Amâncio tinha apreço pelo ofício, ainda mais porque era, a todo instante, chamado de Vossa Excelência. Pois é, além de Vossa, havia também Excelência, o que não dava a menor margem para dúvidas sobre sua eficiência e eficácia. Sentia-se amálgama de Muhammad Ali e Bruce Lee na música ‘Um índio’, de Caetano Veloso.
Impávido, tranquilo e infalível. Ninguém podia com Amâncio. Todos o respeitavam. Melhor, temiam o sujeito, sem contar algumas figuras que chegavam a venerá-lo, como se entidade fosse. Tanto é que, a menor pendenga que surgisse, o magistrado era consultado. E foi justamente por conta de imbróglio envolvendo novo morador que a síndica, dona Maricota, foi ter um dedo de prosa com o mais ilustre residente do condomínio.
— Dr. Amâncio, desculpe incomodá-lo no conforto do seu lar, mas é que surgiu cizânia inadiável.
— Pois não precisa se desculpar, dona Maricota, pois o trabalho de um juiz de direito nunca termina.
— Sim, é verdade, seu juiz.
— Juiz de direito, não esses juízes de paz.
— Sim, de direito, seu doutor.
— Mas qual o motivo da consulta?
— Consulta?
— É, dona Maricota. Qual a razão da sua vinda?
— Ah, tá! É que o novo morador do 306 descumpriu uma norma do condomínio.
— Que afronta! Mal chegou e já está infringindo norma que foi decidida em ata.
— Pois é, pra o senhor ver como são as coisas.
— Hum! E qual foi a norma quebrada pelo réu?
— Ele trouxe um animal.
— Um animal? Pois qual bicho seria? Aposto que é um desses cachorros que passam o dia inteiro latindo.
— Não.
— Não? Hum! Seria então um gato?
— Não.
— Não? Seria uma araponga?
— Não, doutor.
— Não é possível que esse doidivanas trouxe pra cá um tigre ou um elefante?
— Um peixe.
— O quê?
— Um peixe, seu juiz.
— Que seja um peixe, então, dona Maricota. Esse morador quebrou a lei! Ninguém está acima da lei! Imagine um país sem lei? Onde estaríamos?
— O senhor tem razão.
— Pois vamos agora mesmo resolver essa questão, dona Maricota.
Não tardou, lá estavam a síndica e Amâncio diante da porta do transgressor. Coube ao juiz tocar a campainha. Nada. Novo toque, mas nada do morador atender. Teria saído? Impaciente, a mulher olhou para a autoridade e posicionou o indicador no botão da campainha, mas eis que a porta, milagrosamente, se abriu.
— Bom dia, dona Maricota.
— Bom dia, seu Gilmar.
— O que desejam a esta hora?
— Este é o juiz Amâncio.
— Juiz?
— Sim, isso mesmo, seu Gilmar, juiz!
— Juiz de direito, por favor.
— Oh, me desculpe, doutor. Juiz de direito!
— Tá! Mas e daí?
— Daí que o senhor está infrigindo uma das mais importantes normais deste condomínio.
— Eu?
— Sim, o senhor mesmo, seu Gilmar!
— Que norma é essa, seu juiz de direito?
— Foi-me reportado que o senhor possui um animal de estimação.
— O Aurélio?
— Aurélio? Quem é Aurélio?
— Não é mais, dona Maricota.
— O que não é mais, seu Gilmar?
— O Aurélio.
— Como assim, seu Gilmar?
— Não soube?
— O que eu não soube, seu Gilmar?
— Do Aurélio.
— Meu senhor, por favor! Afinal, quem é esse tal Aurélio?
— Senhor juiz de direito, dobre a língua quando falar do meu Aurélio. Ele não era qualquer um.
— Senhor Gilmar, por favor, o senhor sabe com quem está falando?
— O senhor não é juiz de direito?
— Sou, sim, senhor!
— Então…
— Então, o quê, seu Gilmar?
— Então que o Aurélio já não é.
— E quem é esse Aurélio que já não é?
— Meu peixe.
— Morreu?
Gilmar não conseguiu evitar que as lágrimas escorressem pelo seu rosto. Dona Maricota e Amâncio, consternados com o novo vizinho, não tiveram escolha. Abraçaram o sujeito, que caiu em prantos.
Mais alguns minutos, lá estavam os três sentados à mesa da cozinha, tomando café e degustando bolinhos de chuva. No centro, um belo vaso com violetas. Gilmar, com aqueles grandes olhos castanhos, fitava a planta. Perspicaz como ele só, Amâncio parecia ter desvendado o mistério.
— Seu Gilmar, o Aurélio está enterrado nesse vaso?
— Não, seu juiz de direito. Pouco antes de vocês chegarem, joguei o Aurélio na privada.
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Eduardo Martínez é autor do livro 57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’
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