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Sudoeste

Confusão por animal em condomínio acaba em café e biscoitinhos doces

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Juiz de direito, Amâncio tinha apreço pelo ofício, ainda mais porque era, a todo instante, chamado de Vossa Excelência. Pois é, além de Vossa, havia também Excelência, o que não dava a menor margem para dúvidas sobre sua eficiência e eficácia. Sentia-se amálgama de Muhammad Ali e Bruce Lee na música ‘Um índio’, de Caetano Veloso.

Impávido, tranquilo e infalível. Ninguém podia com Amâncio. Todos o respeitavam. Melhor, temiam o sujeito, sem contar algumas figuras que chegavam a venerá-lo, como se entidade fosse. Tanto é que, a menor pendenga que surgisse, o magistrado era consultado. E foi justamente por conta de imbróglio envolvendo novo morador que a síndica, dona Maricota, foi ter um dedo de prosa com o mais ilustre residente do condomínio.

— Dr. Amâncio, desculpe incomodá-lo no conforto do seu lar, mas é que surgiu cizânia inadiável.

— Pois não precisa se desculpar, dona Maricota, pois o trabalho de um juiz de direito nunca termina.

— Sim, é verdade, seu juiz.

— Juiz de direito, não esses juízes de paz.

— Sim, de direito, seu doutor.

— Mas qual o motivo da consulta?

— Consulta?

— É, dona Maricota. Qual a razão da sua vinda?

— Ah, tá! É que o novo morador do 306 descumpriu uma norma do condomínio.

— Que afronta! Mal chegou e já está infringindo norma que foi decidida em ata.

— Pois é, pra o senhor ver como são as coisas.

— Hum! E qual foi a norma quebrada pelo réu?

— Ele trouxe um animal.

— Um animal? Pois qual bicho seria? Aposto que é um desses cachorros que passam o dia inteiro latindo.

— Não.

— Não? Hum! Seria então um gato?

— Não.

— Não? Seria uma araponga?

— Não, doutor.

— Não é possível que esse doidivanas trouxe pra cá um tigre ou um elefante?

— Um peixe.

— O quê?

— Um peixe, seu juiz.

— Que seja um peixe, então, dona Maricota. Esse morador quebrou a lei! Ninguém está acima da lei! Imagine um país sem lei? Onde estaríamos?

— O senhor tem razão.

— Pois vamos agora mesmo resolver essa questão, dona Maricota.

Não tardou, lá estavam a síndica e Amâncio diante da porta do transgressor. Coube ao juiz tocar a campainha. Nada. Novo toque, mas nada do morador atender. Teria saído? Impaciente, a mulher olhou para a autoridade e posicionou o indicador no botão da campainha, mas eis que a porta, milagrosamente, se abriu.

— Bom dia, dona Maricota.

— Bom dia, seu Gilmar.

— O que desejam a esta hora?

— Este é o juiz Amâncio.

— Juiz?

— Sim, isso mesmo, seu Gilmar, juiz!

— Juiz de direito, por favor.

— Oh, me desculpe, doutor. Juiz de direito!

— Tá! Mas e daí?

— Daí que o senhor está infrigindo uma das mais importantes normais deste condomínio.

— Eu?

— Sim, o senhor mesmo, seu Gilmar!

— Que norma é essa, seu juiz de direito?

— Foi-me reportado que o senhor possui um animal de estimação.

— O Aurélio?

— Aurélio? Quem é Aurélio?

— Não é mais, dona Maricota.

— O que não é mais, seu Gilmar?

— O Aurélio.

— Como assim, seu Gilmar?

— Não soube?

— O que eu não soube, seu Gilmar?

— Do Aurélio.

— Meu senhor, por favor! Afinal, quem é esse tal Aurélio?

— Senhor juiz de direito, dobre a língua quando falar do meu Aurélio. Ele não era qualquer um.

— Senhor Gilmar, por favor, o senhor sabe com quem está falando?

— O senhor não é juiz de direito?

— Sou, sim, senhor!

— Então…

— Então, o quê, seu Gilmar?

— Então que o Aurélio já não é.

— E quem é esse Aurélio que já não é?

— Meu peixe.

— Morreu?

Gilmar não conseguiu evitar que as lágrimas escorressem pelo seu rosto. Dona Maricota e Amâncio, consternados com o novo vizinho, não tiveram escolha. Abraçaram o sujeito, que caiu em prantos.

Mais alguns minutos, lá estavam os três sentados à mesa da cozinha, tomando café e degustando bolinhos de chuva. No centro, um belo vaso com violetas. Gilmar, com aqueles grandes olhos castanhos, fitava a planta. Perspicaz como ele só, Amâncio parecia ter desvendado o mistério.

— Seu Gilmar, o Aurélio está enterrado nesse vaso?

— Não, seu juiz de direito. Pouco antes de vocês chegarem, joguei o Aurélio na privada.

……………………………

Eduardo Martínez é autor do livro 57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’

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