Enquanto os ataques israelenses são cada vez mais intensos na Faixa de Gaza e não poupam sequer hospitais e abrigos da ONU, crescem críticas de países tradicionalmente neutros, como o Brasil. Pela primeira vez autoridades brasileiras, a exemplo do assessor especial Celso Amorim, falaram que Israel comete genocídio contra a população palestina.
Os atritos nas relações diplomáticas entre os dois países cresceram ainda mais na última semana, quando o embaixador de Israel no Brasil, Daniel Zonshine, se reuniu com o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no Congresso Nacional. O encontro, que teve como foco mostrar imagens dos ataques do Hamas à Israel no dia 7 de outubro, quando mais de 1,4 mil pessoas morreram e outras cerca de 240 foram sequestradas, ainda teve a presença de deputados de oposição ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Amplamente divulgado nas redes sociais, tanto da embaixada israelense quanto do próprio diplomata, o caso gerou revolta entre membros do Palácio do Planalto, que já chegaram a declarar que a permanência de Zonshine no país é “insustentável”.
Para o professor de direito internacional Paulo Henrique Gonçalves Portela, a situação é “delicadíssima”. Conforme o especialista, um diplomata estrangeiro até pode se reunir com forças da oposição, porém encontros como esse têm que ser feitos “com cautela, de modo a não causar muita exposição”.
“Acredito que um possível diálogo entre o embaixador de Israel no Brasil e as forças de oposição deveria ter sido feito de uma maneira muito mais discreta, de modo a evitar uma publicidade para as forças de oposição. O que eu insisto é que isso pode, sim, configurar intervenção nos assuntos internos do Estado. É uma situação extremamente delicada”, frisa o analista, acrescentando que Daniel Zonshine pode ter desrespeitado o direito internacional previsto na Convenção de Viena, que rege as relações diplomáticas no mundo desde 1961.
Membros importantes do PT também criticaram a atuação do embaixador israelense. O vice-líder do partido no Congresso, Lindbergh Farias, defendeu a expulsão de Zonshine do país por ter cruzado a linha do aceitável. “Criticou publicamente Lula e o governo, que desde o início do conflito só pregam e trabalham pela PAZ, e agora se reúne com Bolsonaro e bolsonaristas pra fazer política?”, questionou na rede social X.
A presidente petista, Gleisi Hoffmann, também confrontou Daniel Zonshine nas redes sociais por conta da “aliança espúria” com o ex-presidente Bolsonaro. Na mesma data, o diplomata ainda tentou antecipar as prisões de dois brasileiros ligados ao grupo libanês Hezbollah suspeitos de planejarem ataques terroristas contra instituições judaicas no país, o que esquentou ainda mais a temperatura e fez o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, se pronunciar. Para Dino, nenhum representante de governo estrangeiro pode tentar “antecipar resultado de investigação conduzida pela Polícia Federal”.
E com o retorno do grupo com 32 brasileiros que estava na Faixa de Gaza ao país após intensas negociações, o governo ganha mais força para tentar retirar o embaixador nomeado por Israel do Brasil sem atrapalhar futuras repatriação.
O doutor em direito constitucional Acacio Miranda da Silva Filho, professor da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, argumenta que as diferenças ideológicas dos governos brasileiro e israelense podem ter levado ao episódio. “O governo israelense é declaradamente de direita, tem uma postura efusiva e contundente nas suas relações internacionais, e sabemos que hoje o governo brasileiro é mais afinado à esquerda. […] Obviamente isso acaba reverberando algumas diferenças e, por vezes, gestos desastrosos como esses”, explicou.
Mesmo com os atritos dos últimos dias, o professor Paulo Henrique Gonçalves Portela avalia que a possibilidade de o governo brasileiro adotar uma postura abertamente contrária a Israel é quase nula.
“A posição tradicional da política externa brasileira em todos os conflitos internacionais é uma posição da maior neutralidade possível, do maior equilíbrio possível. O Brasil é um país que procura preconizar a prevalência do direito internacional e, portanto, trabalhar pela solução pacífica das controvérsias”, pontua o especialista.
Diferentemente de países da América Latina como a Bolívia, que rompeu relações com Tel Aviv em protesto à magnitude da guerra que, só na Faixa de Gaza, já matou mais de 11 mil palestinos, o especialista acredita que a diplomacia brasileira quer evitar ainda mais tensões nesse cenário. Ele lembra ainda que essa iniciativa traria grandes impactos internos ao governo Lula, “em virtude da simpatia que Israel tem de inúmeros grupos religiosos e sociais”, como é o caso dos evangélicos.
“Faria com que o governo acabasse criando uma aresta desnecessária com esses grupos, no momento em que a política brasileira ainda é muito complexa, se ressente muito da polaridade dos últimos anos. Não vejo, portanto, o Brasil adotando nenhuma posição abertamente contrária a Israel”, conclui.
Acácio Filho concorda e acrescenta que as relações geopolíticas também são pautadas em interesses financeiros entre os países. “Essas relações podem degradar, mas em nenhum momento elas chegaram em um aspecto extremo, porque são pautadas em questões econômicas, e, sob esse ponto de vista, a parceria Brasil-Israel é bastante importante para os dois países”, argumenta.
Além do assessor especial da presidência Celso Amorim, o presidente Lula já disse que o conflito em Gaza é um genocídio. “Sinceramente, eu não sei como um ser humano é capaz de guerrear sabendo que o resultado dessa guerra é a morte de crianças inocentes”, disse. Oficialmente, a diplomacia brasileira tem evitado usar a expressão. Mesmo assim, caso ocorra um reconhecimento, o professor Paulo Henrique Portela acredita que não deve atrapalhar a tradicional neutralidade das relações internacionais brasileiras.
“A neutralidade não diz respeito a reconhecer ou não a existência de certos fatos, ela se perde quando o Estado toma parte do conflito. O Brasil poderia eventualmente reconhecer esse genocídio para dizer a Israel que há um fato ocorrendo na Faixa de Gaza e [que], por conta disso, é preciso sentar e conversar para tentar solucionar isso”, enfatiza.
De acordo com o especialista, a convenção das Nações Unidas sobre genocídio, que se limita a dizer que há “crime de guerra” de Israel contra os palestinos, traz como genocídio “atos cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte um grupo nacional, étnico, radical ou religioso” com atos sistemáticos. “Caberia avaliar, no caso da situação em Gaza, a existência dessa política, que tem um alvo, o povo palestino, que mora naquela região, [e que] é unido por uma certa cultura comum.”
Por fim, o analista de direito internacional avalia que as relações entre Brasil e Israel nunca foram centrais para a política externa de ambos os países. “São relações historicamente amistosas, são relações historicamente sem maiores problemas, sem grandes notas e grandes traços de divergências. Há um histórico interessante do papel decisivo do Brasil nas reuniões da Assembleia Geral da ONU, nas reuniões da ONU que levaram à criação do Estado de Israel, mas, de resto, uma relação sem maiores problemas, mas também sem maior destaque.”