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Construtora Odebrecht vai levando com sua Internacionalização

Ao colocar em perspectiva histórica a consolidação da atuação internacional da Odebrecht já se nota a porosidade de perspectivas que trataram de datar a formação do “Estado Odebrecht” durante os governos Lula. Mas ao mudar as lentes para os anos 1980-1990 estaríamos, corretamente, encontrando o nascimento de um “Estado Odebrecht”?

Uma rápida pesquisa nos principais sites de busca e a palavra “Odebrecht” logo aparece relacionada a adjetivos não muito nobres: corrupção, propina e lavagem de dinheiro são alguns dos mais comuns.

Não é para menos: a espetacularização promovida pela Operação Lava Jato serviu ao propósito de suplantar o debate sobre o fortalecimento das empresas nacionais ou mesmo do funcionamento das relações que se operam entre grandes agentes do capital e Estados nas economias capitalistas mundiais. Em seu lugar, se disseminou um discurso que, ao fim e ao cabo, vilanizou a atividade política e impôs uma pecha às empresas nacionais.

Para construir essa narrativa hegemônica, a Operação Lava Jato contou com uma simbiótica atuação junto aos grandes meios de comunicação, justificativa essa depreendida da própria análise da Operação “Mãos limpas”, escrita por Sergio Moro. Rememorando a operação de combate a corrupção italiana, afirmou o juiz que, naquela situação: “os vazamentos serviram a um propósito útil. O constante fluxo de revelações manteve o interesse público elevado e os líderes partidários na defensiva”.

Os reflexos disso faziam se notar nas páginas de importantes jornais latino-americanos: “capitalismo mafioso latino-americano” e “Estado-Odebrecht nascido sob as asas de Lula”, são noções que avançaram fronteiras e serviram ao propósito da construção de uma ideia que articulava de forma umbilical Odebrecht, governos petistas e, em alguns casos, “socialismo do século XXI”.

Os artigos jornalísticos não devem ser reduzidos a ensaios de opinião pessoal, mas vistos como uma espécie de ponta de lança pública de matriz teórica acadêmica, o que respalda a visão difundida pelos grandes meios de comunicação. Talvez o conceito de Capitalismo de laços, de Sergio Lazzarini, se apresente como paradigma de um viés liberal interpretativo não só da questão da Odebrecht, mas do capitalismo brasileiro como um todo.

Na visão de Lazzarini, Capitalismo de laços se trata de um modelo assentado no uso de relações particulares para explorar oportunidades de mercado ou para influenciar determinadas decisões de interesses. Conforma-se, assim, em um “emaranhado de contatos, alianças e estratégias de apoio gravitando em torno de interesses políticos e econômicos”.[1] De forma que, corrupção, clientelismo, privilégios e favorecimentos, escassez de crédito e burocracia ineficiente, além de ingerência estatal nas transações próprias do mercado são, na visão do autor, pedras angulares do nosso “capitalismo de laços”, maculado pela atuação estatal. [2]

Essa amálgama entre esfera privada e pública, por sua vez, seria decorrente da ausência de “instituições que promovam e facilitem o funcionamento de seus mercados”, instituições capazes de intermediar as relações entre vendedores e compradores, o que torna essa relação “menos transparente e mais dificultosa”. É justamente a ausência desses intermediários que abriria caminho aos Institucional Voids [vazios institucionais], espécies de gaps que representam a singularidade primordial das economias emergentes nessa visão.[3]

Negar o envolvimento da holding em escândalos de corrupção cuja natureza se assenta, de fato, em relações perniciosas entre esferas pública e privada, consistiria em um negacionismo. O que propomos é retirar o foco exclusivo das páginas policiais em que a empresa tem aparecido, para, através de uma análise da consolidação de sua atuação internacional, compreender que, para além de fruto de um processo histórico iniciado durante a ditadura militar brasileira, a articulação entre esse agente capitalista e o Estado nacional representou um processo de mão dupla e de interesses particulares convergentes.

Da Bahia para o mundo
As narrativas que apontam para os governos Lula o nascimento da relação Odebrecht-Estado nacional obedecem a propósitos políticos que prescindem de um apagamento histórico de, pelo menos, sessenta anos e, em especial, dos anos 1980 e 1990, quando a empresa já consolidara sua atuação internacional e, em especial, na América. A Construtora Norberto Odebrecht (CNO) foi fundada em 1945, na Bahia e atuou enquanto empresa de engenharia pesada de alcance regional até fins dos anos 1950, com algumas obras de destaque, como a Usina Hidrelétrica de Correntina, na Bahia.[4]

Essa situação começa a se alterar quando, em 1954, a empresa se torna cliente da Petrobras com a obra do oleoduto Catu-Candeias, abrindo as portas de uma relação que prosseguiria com a realização de obras para construção de instalações de apoio, estações de tratamento de água, plataformas marítimas, pontes, canais e barragens, por exemplo.

A despeito de algumas inovações que garantiram seu crescimento, por exemplo, a realização simultânea de todas as etapas de suas construções – substituindo a então consagrada técnica de levantamento de estrutura primeiro, paredes e rebocos depois – responsável por maior agilidade na entrega das obras, é notório que os vínculos políticos estabelecidos com os órgãos de governos estatais[5] foram condição imperiosa para a ascensão da empreiteira. No início dos anos 1970, a então 19ª maior construtora brasileira (atrás, entre outras, da também nordestina Queiroz Galvão) muda de patamar, deixando de ser uma construtora com respaldo regional para se “nacionalizar”.

As vitórias em licitações no Rio de Janeiro para a construção do campus da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), do edifício-sede da Petrobras (aproveitando-se de ligação estabelecida com Geisel, ex-comandante da Petrobras e então presidente do Brasil), do Aeroporto Internacional do Galeão e da Usina Termonuclear Angra, entre 1970 e 1976, alçam a CNO a um novo status.

Embora nacionalmente consolidada e vivendo um ciclo de grandes obras no país – como o Complexo Hidrelétrico Pedra do Cavalo, em Cachoeira, na Bahia, o Sistema de Abastecimento de Água Riachão Potengi, no Ceará, e o Complexo siderúrgico da Açominas, em Ouro Branco, Minas Gerais –, o Grupo Odebrecht se encontrava ante um cenário de dificuldades com a retração do mercado da construção pesada no país. O montante de obras encurtara pela metade entre 1975 e 1976, passando de cerca de U$14 bilhões para U$7 bilhões.[6]

A organização se encontrava ante um impasse: seguir a opção por diversificar os negócios, fortalecer a posição de engenharia no país mediante aquisições ou ir para o exterior. A opção foi pelos três: entre 1979 e 1985, a então construtora adentra no negócio da petroquímica, com o polo Petroquímico de Camaçari, na Bahia, convertendo-se, assim, em uma holding; adquire construtoras concorrentes, como a Tenenge e a CBPO; e, por fim, assina seu primeiro contrato internacional.

A escolha da América do Sul como ponto de partida da internacionalização se explicava, principalmente, por dois fatores. O primeiro é geográfico: em um tipo de atividade econômica cuja tecnologia vem já embutida no próprio equipamento, é estratégico garantir o transporte do maquinário e de suporte logístico o mais rápido possível. Assim, a América do Sul era uma região com maior possibilidade de coordenação e apoio.

O segundo fator é de ordem geopolítica. Não é exagero afirmar que a atuação se baseava na visão estratégica de que a construtora deveria buscar oportunidades onde houvesse interesse do governo brasileiro em estreitar relações com o cliente. Sendo o Estado o principal cliente das empreiteiras em geral, seguir a órbita geopolítica brasileira não só garantiria o fornecimento de recursos mediante créditos vantajosos – especialmente aqueles liberados pela Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil (Cacex) – como, também, contatos privilegiados junto aos governos locais.

A respeito dessa vinculação entre empresa e governo brasileiro, não é por acaso que a assinatura do primeiro contrato internacional da CNO – a construção da Hidrelétrica de Charcani V, na região de Arequipa, no Peru – seja parte integrante da declaração conjunta entre os presidentes João Figueiredo (1979-1985) e Morales Bermúdez (1975-1980), do Peru, durante visita deste ao Brasil.

Com o intuito de reafirmar a importância de se manter a integração dos países latino-americanos, o contrato assinado entre a Electroperu e a CNO, em consórcio com a Harrison Overseas Construction (Canadá) – que detinha 10% da obra –, estipula um crédito entre o Banco do Brasil e o governo do Peru, no valor de US$ 89 milhões. Ampliando a capacidade geradora de 35Mw para 135Mw em Arequipa, a obra foi considerada de grande dificuldade técnica: 95% das atividades realizadas seriam subterrâneas, em uma região da Cordilheira dos Andes constantemente sujeita a abalos sísmicos.

A segunda obra internacional da CNO se dá no Chile, em 1981, com a realização do desvio do Rio Maule, na região de Maule, zona central do país andino, para a construção da Hidrelétrica de Colbún-Machicura. Esta abastecia a região central do Chile, entre Santiago e Concepción, e era responsável por um terço da demanda energética do país. A “conquista” da obra se deu através de um consórcio no qual, junto à Odebrecht, participou a brasileira Engesa e que teve a coordenação de Otávio Medeiros – chefe do Serviço Nacional de Informações no governo Figueiredo.

O terceiro ponto de atuação da construtora no continente se dá no Equador. País que, junto ao Peru, detém maior presença da empreiteira, contou primeiramente com a obra de irrigação da península de Santa Elena. A empreitada não só marca a entrada da CNO em mais um país latino-americano, como consolida uma forma de atuação característica, pautada pelo envolvimento direto de órgãos do Estado brasileiro como facilitadores dessa empreitada. Orçada, à época, em US$ 200 milhões, a obra conta novamente com financiamento do Banco do Brasil, através da Cacex. Como contrapartida, além da projeção de uma empresa nacional no exterior e o posterior pagamento do financiamento, ela gera exportações brasileiras de bens de capital de aproximadamente US$ 48mi, e de bens intermediários e de consumo durável de quase US$ 33mi (ODEBRECHT INFORMA, 1988b, p. 9).

Mas não só: o apoio dado pelo Estado brasileiro não se restringe apenas ao aporte financeiro. A exportação de serviços da construtora é responsável por transformar o Brasil em um dos quatro principais parceiros comerciais do Equador. A diplomacia brasileira, logo, mantém atuação direta no apoio aos exportadores de produtos e serviços. A própria obra de Santa Elena é detectada e comunicada pela embaixada brasileira em Quito às empresas nacionais de construção pesada. Ademais, a embaixada é responsável direta pela criação de redes de contato entre o empresariado nacional e o governo equatoriano, ao promover missões comerciais e eventos como feiras de catálogos, bem como, principalmente, por importante lobby junto ao governo brasileiro, o que facilita a importação de produtos equatorianos (evitando uma possível retaliação comercial por parte dos andinos). (ODEBRECHT INFORMA, 1988b, p. 11).

É a partir desses três países que a presença da CNO se irradia para o continente, entre os anos 1980 e 1990. Argentina, com a construção da Hidrelétrica de Pichi Picún Leufú, em 1987; México, Venezuela e Colômbia, com as obras da barragem de Los Huítes, o Centro Comercial de El Lago e a ferrovia La Loma – Santa Marta, respectivamente, em 1992, além de novas obras no Peru, como os canais de Chavimochic, em 1995 (ODEBRECHT INFORMA, 1987, p. 22). Já nos anos 1990, cerca de 1/3 de todo conjunto de obras da CNO se encontrava em mercados internacionais.

As pontes com governos e sociedades locais, no entanto, não se restringiam aos canais diplomáticos oficiais. Embora decorrente de um reconhecimento brasileiro da independência angolana ainda no governo Geisel, a obra da hidrelétrica de Capanda – responsável por gerar 520Mw -, em 1986, com o aproveitamento da barragem do Médio Kwanza, se deu em um contexto bastante particular.

Em um cenário de guerra civil opondo Unita – apoiada pelos Estados Unidos e pelo apartheid sul-africano – e o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), foi com o apoio especial do coronel Antonio dos Santos França N’Dalu, amigo pessoal de integrantes da construtora brasileira, e seu subalterno Jorge Silva “Sapo”, chefe do gabinete militar responsável por garantir a segurança da área onde transcorriam as obras de Capanda, que a construção, que contou com a parceira da construtora soviética Technopromexport, se torna possível. [7]

Mas se, em Angola, o intermédio com governos locais se deu pelo “lado soviético” na Guerra Fria, o caso estadunidense é oposto. Para adentrar no mercado da Flórida, com a construção do Metromover nos anos 1990, a CNO contou com a parceria da Church & Tower, empresa presidida pelo cubano fugitivo Jorge Mas Canosa. Personalidade mais influente da comunidade cubana local, Mas Canosa é responsável direto pela fundação da Cuban American National Foundation (CANF), instituição que atuou pela desestabilização do regime Castrista.

Dessa forma, já nos anos 1990, a CNO se afirmava enquanto um importante ator do mercado mundial de obras, com destaque especial para América Latina, combinando uma atuação empresarial que contava com canais estabelecidos junto ao Estado brasileiro e contatos privilegiados junto a sociedades locais.

Capitalismo de laços ou capitalismo?
Ao colocar em perspectiva histórica a consolidação da atuação internacional da CNO já se nota a porosidade de perspectivas que trataram de datar a formação do “Estado Odebrecht” durante os governos Lula. Mas ao mudar as lentes para os anos 1980-1990 estaríamos, corretamente, encontrando o nascimento de um “Estado Odebrecht”? Essa não me parece a perspectiva mais correta.

No lugar de conceituar a conformação de alianças entre Estados nacionais e grandes empresas enquanto uma especificidade da periferia do capital, ou em um Capitalismo de laços, parece-me mais correto nos valermos de um outro paradigma para explicar essa relação: capitalismo.

Em primeiro lugar, convém salientar que essa inserção internacional não pode significar, de fato, uma amálgama que dissolve as singularidades entre esses dois espaços de análise – Estado e grande empresariado. Partindo dos postulados de Eli Diniz e Renato Boschi, torna-se central não se perder de vista facetas específicas desses organismos, rechaçando uma visão que objetive a criação de um bloco unitário composto pelo Estado e o grande empresariado. Dessa maneira, conseguimos não perder de vista toda a riqueza de detalhes que compõe essa relação.

Embora historicamente se conformem inúmeros exemplos de interesses que levam a uma atuação conjunta entre essas duas entidades, não podemos ignorar a autonomia de atuação de cada uma dessas entidades. A despeito de historicamente convergirem em diversos momentos, a CNO e o Estado brasileiro enxergam essa aproximação à luz de objetivos particulares e interesses próprios.

Para a CNO a aproximação junto ao Estado é vista como estratégica. Primeiro, ao garantir condições materiais e de articulações com agentes estatais para promover sua internacionalização. Já em fins dos anos 1990, a CNO é uma das principais empreiteiras nacionais, o que preparará terreno para, nos anos 2000, a levar ao posto de segundo grupo empresarial brasileiro mais internacionalizado, em 2008.[8]

Já para o Estado brasileiro, por seu turno, essa aproximação junto à CNO, ao longo das décadas finais do século passado, mostra-se interessante sob um duplo prisma. Primeiro, pensando em um contexto dos anos 1980 marcado por tentativas de articulações com países vizinhos em busca de ampliação de acordos comerciais, tarifários e integrativos em geral, a CNO se apresenta enquanto um importante instrumento de aproximação junto a essas nações, a partir da construção de uma política externa “parceira” e atuante para solucionar os gargalos das nações próximas. Por outro lado, a atividade de exportação de serviços de engenharia, naturalmente, reverte-se em benefícios diversos para o próprio país, como arrecadação de divisas, geração de empregos e patentes tecnológicas.[9]

Assim, a essa movimentação de agentes com interesses particulares que se articulam para operar em uma economia mundial dominada por grandes grupos conglomerados empresariais, não podemos visualizá-la enquanto algo que não a própria dinâmica capitalista. Isso porque não interpretamos o “capitalismo original” como um “capitalismo sem laços”, enquanto uma espécie de ‘sistema etéreo’, livre da ação e atuação de agentes sociais particulares historicamente constituídos. Julgamos mais interessante, aqui, por exemplo, interpretar enquanto um dos elementos centrais do capitalismo a existência da camada de um ‘contramercado’, que representa, em realidade, a manipulação da própria economia de mercado.[10]

Dessa forma, mais do que locus capacitador de instituições que garantiriam a imparcialidade estatal para o bom funcionamento da “mão invisível” do mercado, livre de interferências externas, devemos entender esse espaço de interconexões entre grandes empresas e Estado enquanto uma visible hand. [11] Logo, sem negar a existência de vínculos entre agentes privados e públicos ou, porventura, a ilicitude de determinadas práticas, o que a análise da internacionalização das CNO nos anos 1980-1990 nos demonstra, é a inexorável tendência de reprodução capitalista.

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