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Meu bom José

Coral vai de Rita Lee e muda história das missas

Publicado

Autor/Imagem:
Daniel Marchi de Oliveira - Foto Reprodução/Instagram

A recente morte de Rita Lee me fez mergulhar em recordações há muito intocadas, e, estando ali, navegar por correntes aleatórias das mais vivas e inesquecíveis memórias da minha infância e adolescência.

Lá pelo fim dos anos 60, alguns jovens do meu bairro, todos católicos e frequentadores da matriz de São Sebastião, formavam o coral que acompanhava as missas de domingo e dias de festa. O grupo, que se renovava de vez em quando, vinha de vários anos antes, sob a regência do padre maestro Natércio. Só que o Padre Natércio fora promovido a bispo, e partiu para trabalhar em Roma. No seu lugar, em 1968, chegou o Padre Marcos.

O novo pároco não sabia nada de música e pensávamos até que o grupo seria extinto. Quando o vimos pela primeira vez, ficamos espantados com a sua pouca idade e jovialidade, apesar dos grossos óculos que usava e o modo com que penteava o cabelo. Levamos a ele a ideia de manter o coral, e não só fomos vivamente apoiados como ele se interessou muito por nós, querendo saber como era o regime de ensaios, apresentações e repertório.

Ao contrário do antigo padre, que não admitia mais do que nossas vozes e o velho órgão elétrico da igreja, Padre Marcos logo autorizou que incorporássemos ao coral duas guitarras elétricas, um contrabaixo e a bateria tocada por mim que, até então, compunha a fileira dos tenores.

Causou uma certa estranheza nos fiéis como soava diferente o nosso grupo na primeira missa de domingo da qual participamos após a incorporação da banda ao coral. Várias foram as reclamações recebidas pelo Padre Marcos, todas elas prontamente rechaçadas, justificadas no concílio de João XXIII e na forma de atrair a juventude. E deu certo. Mesmo a garotada do bairro que não frequentava as missas, passou a ir ao menos para dar uma olhadinha em como tocávamos.

Paralelamente, íamos formando uma relação completamente nova com aquele pároco moderno e comunicativo, de perfil um tanto diferente de seu antecessor.

Padre Natércio fora notação em pauta, cada dó em seu lugar. Padre Marcos era sol. Ele se empolgava conosco, jovens, e nos dava orientações e conselhos como os de um irmão mais velho. Incentivava que nos envolvêssemos em atividades na igreja, e, criando o Grupo Cristo Jovem, nos colocava em lugar de destaque em todos os eventos.

Padre Marcos vinha de uma família rica, tinha muitos irmãos e dirigia uma Kombi verde e branca com a qual chegou a nos levar em outras igrejas para nos apresentarmos. Um dia, no alvorecer da década de 70, por sugestão de alguém do grupo, meio brincando e meio falando sério, nós resolvemos começar a ensaiar uma nova música no coral, com nossa banda. Em princípio, era para ficar entre nós. A música: “José”, versão de Nara Leão recém-lançada por Rita Lee no seu primeiro disco solo, “Build Up”. Nos versos da letra a história de como teria sido tranquila a vida do pai de Jesus se ele tivesse feito tudo diferente do que fez.

“Olha o que foi meu bom José/Se apaixonar pela donzela/Dentre todas a mais bela/De toda a sua Galileia/Casar com Débora ou com Sara/Meu bom José, você podia/E nada disso acontecia/Mas você foi amar Maria…”

Não tardou para vir a ideia ousadíssima: tocá-la numa missa de domingo. De início, descartamos totalmente a possibilidade. Ia dar m***, com certeza. Até que, insuflado por nós todos, o tecladista/organista Sávio, que acabou sendo meio que nosso maestro após a partida do antigo padre, foi convencido. Na oportunidade mais próxima, assim que Padre Marcos repetiu o “Ide em paz, e que o Senhor vos acompanhe”, nós no coro da igreja, mandamos a nossa. Foi com frio na barriga que eu comecei as primeiras notas no prato da bateria e no bumbo: tá, tá, dum-dum… E em seguida soou o órgão elétrico de Sávio, entrando as meninas do coro numa vocalização linda, as duas guitarras e o contrabaixo pesado…

Foi um silêncio retumbante na igreja cheia. Ninguém se movia do lugar. Da minha posição eu não via, mas o Padre Marcos olhou para cima, incrédulo, tirou seus óculos e pôs-se a escutar, bem como todos os outros presentes.

Algumas senhoras fizeram uma expressão de espanto e desaprovação,apertando o senho. Algumas crianças e outros jovens, lá embaixo, começaram a bater palmas discretamente na levada da música. E isso foi contagiando alguns presentes. Dó, mi menor, fá, dó, lá menor… e continuávamos:

“Você podia simplesmente/Ser carpinteiro e trabalhar/Sem nunca ter que se exilar/De se esconder com Maria/Meu bom José você podia/Ter muitos filhos com Maria/ E teu ofício ensinar/ Como teu pai sempre fazia/Por que será meu bom José/Que esse teu pobre filho um dia/Andou com estranhas ideias/Que fizeram chorar Maria…”

Ao fim da canção, pareceu para nós a eternidade aquele milésimo de tempo entre soarem os últimos acordes que ainda reverberavam na vasta nave, inundada pela claridade da manhã, e a manifestação do involuntário público para aquela nossa ousadia de experimentação musical. E os aplausos vieram.

Muitos. Fortes. Inesperados. O sorriso do Padre Marcos expressou naquela hora de depois total aprovação à nossa atitude. Jamais aquele amigo condenaria a música, o amor, a juventude. Todos do grupo e os demais que passaram por aquela igreja naquele tempo, guardaram do Padre Marcos a mais favorável impressão. Os anos passaram, os interesses mudaram, a música foi substituída por obrigações profissionais, família, preocupações de vida adulta… E acho que jamais voltei a ver o mundo sob aquela claridade que só a nossa igreja parecia ter quando o sol a acariciava nas missas das manhãs dominicais.

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