Com estarrecimento, o mundo testemunhou mais um teste nuclear realizado pelo regime de Pyongyang, o quinto de sua história, e o mais assustador deles. Mais assustador porque demonstrou maior poderio destrutivo (estima-se que o artefato tenha superado o potencial da Little Boy, a bomba lançada sobre Hiroshima, em 6 de agosto de 1945) e porque sucedeu testes de mísseis balísticos que envolveram lançamentos submarinos —plataforma que multiplica as possibilidades e o alcance de ataques, representando ameaça real, inclusive contra a costa oeste americana.
Por ter sido realizado por um país que é considerado um pária na sociedade internacional, liderado por figura pitoresca reconhecida por sua intransigência e por excentricidades incompreensíveis, com retórica extremamente ameaçadora, é muito elevado o tom do alarme que ecoa pelo mundo.
Mas, além dos discursos e notas de condenação divulgados mundo afora, o que se viu foi uma enorme dificuldade em se ultrapassar a mera retórica. Enquanto membros do Conselho de Segurança da ONU sinalizavam com novas sanções —que já se mostraram ineficazes para frear o desenvolvimento nuclear norte-coreano— e a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) apenas manifestou seu repúdio, analistas estratégicos apontavam para um problema maior.
A diretora-assistente do instituto EUA-Coreia da Universidade Johns Hopkins afirmou que “o governo dos EUA não tem uma estratégia para a Coreia do Norte”. É no mínimo curiosa essa ausência de uma estratégia para aquele país, claramente a maior ameaça atual contra o regime de não proliferação nuclear. A tentativa de compreensão dessa ausência pode trazer luzes maiores para analisar melhor a questão.
Talvez, a raiz do problema não seja a Coreia do Norte, ou o Irã, que até recentemente ocupava lugar de destaque nas manchetes como a ameaça da vez no que toca à questão nuclear. Muito provavelmente, a dificuldade em se dar uma resposta efetiva e legítima a ameaças como a desses dois países decorre de ambiguidades que se encontram não nesses estados assim chamados párias, mas no centro do poder político mundial.
Ao se depararem com esse tipo de teste, as nações que integram o núcleo do poder político internacional, notadamente as potências nucleares reconhecidas pelo regime do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), são confrontadas com ambiguidades delas próprias que impedem a adoção de um discurso mais enérgico e que seja respaldado pelos demais países.
Quando do contexto em que surgido o TNP, em 1968, a questão nuclear era polarizada entre os interesses daqueles que já dominavam a tecnologia nuclear para fins bélicos, de um lado, e, de outro, as nações que não apenas não a detinham, como se ressentiam das tentativas de se criar viés discriminatório para se definir quem poderia ou não a deter.
O impasse foi solucionado com barganha pela qual, para a aprovação do tratado, as nações nucleares aceitaram contribuir com o intercâmbio tecnológico com os demais países, além de assumirem o compromisso previsto no art. VI do TNP, que previa que todas as nações adotariam negociações de boa-fé objetivando o desarmamento nuclear completo. Há quase meio século, portanto, as nações nucleares vêm ignorando essa segunda parte da barganha, comportamento que cada vez mais vem sendo alvo de críticas e de constrangedora pressão internacional.
Paradoxalmente, o reflexo mais perigoso desse comportamento vago das nações centrais é verificado justamente no comportamento dos Estados que se veem mais ameaçados pelo cenário político internacional —aqueles considerados párias. A saída mais segura a esses Estados, sinalizada pelas próprias nações centrais, é a do desenvolvimento de programas nucleares próprios como meio de autoafirmação no jogo internacional.
São emblemáticos os exemplos recentes sobre o tema. Depois da frustrada invasão ao Kuwait, o Iraque foi despojado de seu programa de armas de destruição em massa ao longo da década de 1990. Ainda assim, mesmo sob falsas acusações, foi invadido por coalisão internacional ilegítima que, além de não encontrar nenhum arsenal atômico, depôs o regime de Saddam Hussein.
A Líbia, que em 2004 foi flagrada desenvolvendo programa nuclear secreto com apoio de quadros paquistaneses, cedeu à pressão internacional, abriu seu programa para inspeção de agentes da AIEA e abandonou seu plano nuclear. Poucos anos depois, Gaddafi foi deposto com apoio aéreo europeu aos insurgentes líbios, que lincharam o ditador depois da queda do regime.
Finalmente, a Ucrânia, que ao longo dos últimos anos vem sofrendo enormemente com a presença russa em seu território, provavelmente arrependeu-se de ter, em 1994, assinado o Acordo de Budapeste, pelo qual aceitou devolver o arsenal atômico soviético que estava alocado em seu território, em troca do compromisso russo de proteger e respeitar a integridade territorial do país. Desde 2014, o país perdeu o controle da Crimeia para os russos.
Não é exagero afirmar que o desfecho dos conflitos enfrentados por esses três países seria bastante distinto caso detivessem arsenais nucleares. De um lado, as nações centrais impõem o desarmamento aos demais. De outro, aproveitam-se da discrepância bélica daí decorrente para imporem suas agendas.
Essa constatação é a mesma que Pyongyang faz nesse momento, o que reforça a certeza de que não bastarão palavras duras jogadas ao vento. Está mais do que na hora de ser confrontada a incongruência do arranjo sobre o qual se estabeleceu o regime de não-proliferação nuclear. A alternativa é a sucessiva aparição de ameaças contra sua estabilidade, papel que apenas por acaso é ocupado pela Coreia do Norte neste momento, mas que certamente será desempenhado por outros atores futuramente.