A caçada
Coronel perde cachorro de estimação em aventura frustrada

Abrigados precariamente da chuvarada em uma sapopemba, amaldiçoamos a estupidez de sair para a caçada mesmo com os sinais negros da tempestade anunciada.
Comemos os sanduiches encharcados e aproveitamos os fios d’água que nos caíam pelas costas para encher os cantis.
Dormir – nem pensar. A umidade parecia penetrar até os ossos e molhar a alma e, a despeito da estação quente, um friozinho insidioso subia pelas pernas.
– E se vem uma cobra pra sair da chuva?
– Cobra tem medo de chuva?
– Sei lá…
Passava das quatro horas e o dia ameaçava acabar sem um tiro sequer.
Meio adormecido eu sonhei com sol quente nas costas e acordei com um sobressalto com a água que escorria pelo tronco e descia pelo lombo.
Vamo, não vamo, vamo esperá mais um pouco, isso não deve durar pra sempre e pior ainda vai ser andar de noite com este tempo…
Gotas brilhavam como vagalumes hipnotizando o olhar cansado e desesperançoso enquanto perdíamos a conta do tempo.
Parecia que aquilo não ia terminar, quando a chuva amainou e o céu bruxuleou, trazendo a esperança do fim do cativeiro forçado.
De um momento para outro o céu acendeu com um sol tímido e promissor.
Deixamos, sem saudade, o abrigo providencial.
Com sol os bichos vão sair da toca – disse um.
Com uma leve esperança desconfiada tiramos as caçadeiras das capas e carregamos – cartucho de chumbo fino no cano esquerdo e bala no direito.
A trilha molhada e traiçoeira parecia alongar-se sem fim.
Uma eternidade mais tarde vislumbramos o aramado da cerca da fazenda do coronel Pancrácio, velho enrustido e irritadiço que não cumprimentava ninguém, como se cumprimento fosse pago, e o que era de bom costume e
educação naquelas bandas. Evitávamos a sua presença e a sua raiva sem razão nem propósito, já que não se podia evitar a incômoda vizinhança.
Parar para descansar não nos passava pela cabeça, apesar da fadiga que crescia a cada passo.
………….
O mato fechou de novo e entramos em um grotão sombrio no lusco-fusco de final de tarde, com as gotas que caíam das folhas aumentando o desconforto das roupas molhadas.
Descansamos um pouco para beber água e enganar o estômago que roncava à espera de um jantar no seco.
Retornamos ao caminho com medo de não chegar em casa ainda com luz. O dia acaba rápido naquelas alturas.
De repente, um dos companheiros vislumbrou algo e sinalizou urgente para parar e escutar. Barulho de alguma coisa na vegetação fechada à nossa direita – mutum ciscando? Cutia? Não, devia ser maior; cateto? Queixada? Veado mateiro? Não dava tempo de estimar o tamanho ou a raça. Avançamos em silêncio, evitando as poças d’água, as botas coaxando e os ganchos do capim vem-cá prendendo as roupas, as armas destravadas, os nervos tensos como arames de cerca.
Alguma coisa deu uma corridinha e parou. É caititu, mas tá sozinho, curioso! Vai ser duro carregar a carcaça até em casa… e já saboreamos a carne escura, reimosa e deliciosa. Além da admiração dos vizinhos – e vizinhas.
Uma sombra correu e estancou: olho brilhante e pelo escuro.
Deixa pra mim! Hesitei entre bala e chumbo. Descarreguei o cano de bala.
O bicho caiu estrebuchando e corremos pra pegar. Estava salvo o dia – e a nossa reputação.
O que ia na frente estancou e sussurrou baixinho:
– Pessoal, é o cachorro de estimação do coronel! Eu conheço ele, o bicho já me deu muita carreira!
– Vamo enterrá?
– Nessa chuva? E como? Sem enxada nem pá? E se chega gente? Melhor saí de mansinho enquanto dá!
Chegamos a casa ofegantes, rezando pra todos os santos, prometendo não pecar mais por algum tempo – e lembrando o 11ª mandamento: não ser apanhado no ato…
……………………………………
Prof. D. Sc. Fernando Dias de Avila Pires
Departamento de Medicina Tropical
Instituto Oswaldo Cruz, FIOCRUZ
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Florianópolis, SC, Brasil – 88050-150
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