Raphael Câmara, secretário de Atenção à Saúde Primária do Ministério da Saúde e representante do Rio de Janeiro no Conselho Federal de Medicina destruiu na surdina o programa Rede Cegonha – uma política do SUS que integrava e organizava a assistência no pré-natal, no parto, no puerpério e na primeira infância – por uma razão característica de sua atuação profissional: o corporativismo médico.
Criada em 2011, a Rede Cegonha priorizava a humanização do atendimento às gestantes na rede pública, valorizando a atuação de profissionais como enfermeiras obstétricas e parteiras. Agora, as categorias foram sumariamente excluídas da Rede de Atenção Materna e Infantil, a Rami, programa criado pela secretaria de Câmara para substituir a Rede Cegonha e devolver o protagonismo aos médicos obstetras, negligenciando também o atendimento às crianças.
Câmara, ele próprio um obstetra, é um ferrenho defensor da abstinência sexual como forma de contracepção e terminantemente antiaborto. Figurinha repetida nas reportagens do Intercept, o secretário faz parte de uma luta ostensiva travada pelo Ministério da Saúde e pelo CFM para privar mulheres de sua autonomia sexual e reprodutiva.
Não por acaso, é ele quem faz o elo entre as duas instituições, como mostramos em fevereiro de 2021. O médico é responsável por informar o Executivo das discussões que acontecem no conselho, por levar à frente pautas conservadoras do governo no órgão e por pressionar médicos a se calarem sobre as ações de Jair Bolsonaro.
Tanto o CFM quanto o Ministério da Saúde debocham da ideia de humanização do parto, tratando a luta contra a violência obstétrica como uma afronta à dignidade dos médicos ginecologistas e obstetras, como também já revelamos. O Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, de que Câmara faz parte, proibiu há anos a adoção de planos de parto, importantes instrumentos para que os desejos das gestantes sejam levados em consideração no nascimento de seus filhos.
O Conselho Nacional de Secretários de Saúde e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde criticaram duramente o decreto que deu fim à Rede Cegonha e pariu a Rami. Embora o Ministério da Saúde afirme ter ouvido conselhos municipais e estaduais para tomar a decisão e que o tema foi “amplamente discutido”, os órgãos acusam o governo de atuar de forma unilateral, ignorando suas ponderações.
Em nota, o Conselho Federal de Enfermagem acusou o governo de ignorar “dispositivos legais, evidências científicas e apelos ao diálogo” feitos por órgãos como a Comissão Intergestores Tripartite e o Conselho Nacional de Saúde para acabar com a “mais bem-sucedida política pública de assistência ao pré-natal, parto e puerpério no Brasil”. A publicação destaca ainda que a “atuação qualificada da Enfermagem Obstétrica é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como primordial para a redução da mortalidade materno-infantil”.
Os conselhos se manifestaram em 7 de abril, quando a mudança foi publicada no Diário Oficial da União. No mesmo dia, passou a tramitar no Senado Federal o Projeto de Decreto Legislativo 80/2022, do petista Humberto Costa, que pretende revogar a decisão da Secretaria de Atenção à Saúde Primária do Ministério da Saúde.
Independentemente do resultado da empreitada legislativa que tenta salvar a Rede Cegonha, o histórico de Câmara deixa uma coisa clara: o médico e as instituições que ele representa continuarão a se levantar contra qualquer política ou medida que dê o mínimo de poder a mulheres e profissionais não-médicos no parto e no puerpério. Até que toda a autoridade volte a estar concentrada em obstetras como Câmara, eles seguirão sua cruzada corporativista.