A chapa esquentou. A CPI da Covid é um sucesso. Achou seu foco, capturou o tema da corrupção e ainda encontrou uma narrativa com enredos complexos e personagens envolvidos em conspirações, golpes e traições. A prisão em flagrante do ex-diretor do Ministério da Saúde, Roberto Dias, ordenada pelo presidente da CPI Omar Aziz foi uma importante demonstração de força, elevando os riscos para aqueles chamados a testemunhar.
Os dois esquemas de compra irregular de vacinas, o da Precisa Medicamentos e o da Davati Medical Supply, prometem ocupar a cena por um bom tempo. Ficou claro que o Ministério da Saúde na gestão de Pazuello e sob influência de Ricardo Barros abriu as portas para empresas desconhecidas no mercado dispostas a tirar proveito da crise sanitária.
No entanto, a primeira temporada da CPI já tem data para terminar, dia 7 de agosto, e o presidente do Senado Rodrigo Pacheco, resiste em prorrogar os trabalhos. Alguns senadores já apelaram ao STF para garantir mais 90 dias de investigações. Com tanta repercussão e investigações ainda em curso, Pacheco dificilmente conseguirá impedir a prorrogação da CPI, que promete continuar bombardeando o governo até o final do ano.
.Tudo em casa. Se olhar pela janela, Bolsonaro verá a CPI na porta de casa. Aliás, os senadores já passaram por ali e deixaram um ofício com pedidos de esclarecimento sobre as denúncias no caso da Covaxin. A resposta mal educada de Bolsonaro não vai encerrar o assunto, porque além de diversas irregularidades, a senadora Simone Tebet (MDB-MS) identificou erros grosseiros de ortografia em inglês, valores numéricos e indícios de montagem na nota fiscal apresentada pelo ministro Onyx Lorenzoni, numa escandalosa fraude de documentação por parte do governo.
Mesmo vendo indícios de crimes de responsabilidade de Bolsonaro, Tebet é reticente sobre a possibilidade de um impeachment. Já o senador Renan Calheiros vê indícios da presença de Flávio Bolsonaro no mesmo caso. Calheiros definiu como uma “confissão de crime” a declaração do próprio Flávio de que teria levado o dono da Precisa ao BNDES para obter empréstimos. Enquanto isso, Eduardo Bolsonaro também pode entrar numa próxima fase da investigação, agora que a Comissão recebeu os documentos da CPI das Fake News e identificou que os ataques aos adversários políticos da família seguem um padrão semelhante aos ataques nas redes sociais contra a investigação das vacinas.
Já o caso da Davati, que parecia inicialmente um cavalo de troia do próprio governo na CPI, se tornou uma ameaça para Bolsonaro, pois seu nome é citado em mensagens comprometedoras entre o PM Luiz Paulo Dominguetti e Cristiano Carvalho, CEO da Davati. Agora, o The Intercept levanta mais uma suspeita: por que o governo federal vai pagar dois dólares mais caro que os estados pelas doses da vacina Sputnik? A negociação tem onipresença de Ricardo Barros. Além disso, Patricia Faermann lembra que foi uma Medida Provisória assinada por Bolsonaro em janeiro, autorizando a compra de vacinas sem licitação e com pagamento antecipado, que abriu as portas para esse tipo de negociata.
Fechados com Bolsonaro – As provas e denúncias da CPI tem chegado perto não apenas de Bolsonaro, mas também dos quartéis. Antes de ser preso, Roberto Dias sinalizou aos senadores que sofreu interferências de aliados de Pazuello. A lista de militares citados é extensa, como elenca Moisés Mendes: no alto está, óbvio, o general da ativa Eduardo Pazuello. Depois vem o coronel Antonio Elcio Franco, o ex-número dois do Ministério, responsável por todas as decisões sobre compras de vacinas e, atualmente, assessor especial do general Braga Netto na Casa Civil.
Foi em sua defesa, indiretamente, que os ministros militares publicaram uma nota ameaçando a CPI. Abaixo deles e já citados em circunstâncias variadas, os coronéis Marcelo Blanco da Costa, Alexandre Martinelli Cerqueira, Marcelo Pires e Alex Lial Marinho. Surgiram ainda os nomes do coronel reformado da Aeronáutica Glaucio Octaviano Guerra, apontado como intermediário entre o policial Luiz Paulo Dominguetti e a empresa Davati com o Ministério da Saúde, e ainda o coronel Cleverson Boechat Tinoco Ponciano, coordenador-geral de Planejamento do Ministério, que recebeu a proposta da Precisa em seu email pessoal e não pelos meios formais.
No jornal GGN, Luis Nassif lembra que outra intermediária de Dominguetti era a ONG Senah, liderada por um reverendo e também militar reformado e pelo policial civil Carlos Alberto Tabanez, com estreitas relações com os militares bolsonaristas. Para Vera Rosa, no Estadão, o depoimento de Roberto Dias atirando em Pazuello e assessores demonstraria que há uma disputa escancarada entre o centrão e os militares pelas negociatas no Ministério. Mas Maria Cristina Fernandes acredita que dependendo do negócio, militares e centrão fazem parte do mesmo esquema. O fato é que a nota dos generais, por um lado, acusou o golpe da corrupção e, por outro, foi indiretamente uma espécie de nota de apoio ao governo, reforçando o que o Bolsonaro dizia sobre o “meu exército”, como assinala Thais Oyama.
Tudo o que é sólido… – Os escândalos em política são assim: ou se resolvem rapidamente, ou se multiplicam e ameaçam arrastar todos à volta. Parece ser este o caso. Não é de admirar que depois de uma longa vida de fisiologismo parlamentar, Bolsonaro tenha acumulado manchas em seu histórico, como comprova o esquema de rachadinha no tempo em que ele era deputado federal, revelado pela ex-cunhada Ana Cristina Valle.
Com uma enxurrada de fatos negativos, mesmo que Bolsonaro diga “caguei para a CPI”, é claro que o governo está preocupado. Afinal, como afirmou um interlocutor para o G1, “tudo o que é preciso explicar, não é bom. Até porque o discurso de campanha de 2018 era de mudança nas práticas políticas”. Com o saldo político negativo, Bolsonaro segue sem partido e o plano de filiar-se ao Patriota pode naufragar, pois sua entrada enfrenta resistências e uma guerra interna dentro da legenda.
O grau de incertezas políticas evidentemente abre caminho para as mais variadas apostas. A Câmara discute o chamado “distritão”, que tornaria o Congresso ainda mais masculino, branco e velho do que já é, segundo projeções feitas pelo Globo e pelo RenovaBR. Do lado do STF, Luis Roberto Barroso e Gilmar Mendes retomam a antiga proposta do semi-presidencialismo como forma de diminuir o nível de instabilidade política no país. E da parte do governo, a aposta segue sendo o golpe preventivo mirando as eleições de 2022, com a insistência quase obsessiva na fraude eleitoral e na defesa do voto impresso. Sintomas do agravamento da crise política.
Santa paciência – Com um cenário econômico preocupante, sucessivas denúncias na TV e manifestações na rua, a oposição está conseguindo manter o governo na defensiva. Os atos do último dia 3 mostraram que a presença da esquerda nas ruas é consistente e pode agregar inclusive setores da centro-direita se não escorregar para o sectarismo e o divisionismo, como alerta Valério Arcary. Mesmo assim, o impeachment não se encontra logo ali na esquina.
Mariana Schreiber cita seis razões para isso: o número de manifestantes nas ruas ainda é pequeno; não há votos suficientes na Câmara; Arthur Lira tem sua própria agenda e o impeachment não faz parte dela; faltam provas consistentes da participação direta de Bolsonaro nos esquemas denunciados e o Congresso não simpatiza com o Gen. Mourão. Além disso, Eliane Brum lembra que Bolsonaro é sim um mito, daí a dificuldade em desconstruí-lo. Prova disso é que, mesmo que o governo tenha fortes índices de rejeição e que as pesquisas de intenção de votos sejam favoráveis a Lula, Bolsonaro continua sendo a figura com maior presença nas redes, superando em 4 vezes o líder petista.
Além da popularidade digital, ele conta com o agronegócio, com os negacionistas anti-máscara, com o fantasma do comunismo – que continua assombrando os militares – e com o aparato repressivo – como a Abin, que vem monitorando de perto os protestos. Outra importante base de apoio do governo são os evangélicos, que ajudam a embalar a indicação de André Luiz Mendonça ao STF. Além de agradar seu eleitorado, a presença de aliados como André Mendonça e Kassio Nunes Marques no STF tem um papel estratégico nos futuros embates jurídicos que o governo possa ter, ainda mais num momento delicado como o atual.
Alô, porteiro – A decisão de ultraliberais como o MBL e o Partido Novo de aderirem ao impeachment são sinais políticos de que a turma do mercado financeiro desistiu mesmo da dupla Bolsonaro e Paulo Guedes. Segundo Thomas Traumann, a proposta de um imposto de 20% sobre a distribuição de dividendos foi a gota d’água de uma relação que já vinha mal desde a troca da presidência da Petrobras, quando o Planalto havia sido substituído por Arthur Lira e Rodrigo Pacheco na interlocução com o mercado.
Ainda segundo o jornalista, o setor industrial tem se somado aos banqueiros nas reclamações contra Guedes e o movimento se torna uma oportunidade para a Faria Lima se reconciliar com o PT. Vale lembrar que o novo presidente da Fiesp, Josué Gomes da Silva, é filho do ex-vice de Lula, José de Alencar. O choro do sistema financeiro é meio gratuito, já que a proposta de Guedes para o Imposto de Renda vai continuar isentando em 60% os super-ricos e, ainda assim, Guedes admitiu que pode recuar na proposta. Além disso, o governo decidiu acelerar a privatização dos Correios, como já tinha feito com a Eletrobras, e acrescentar sete terminais pesqueiros para tentar reconquistar o coração do mercado.
Como a popularidade vem caindo também entre os setores mais pobres, o governo prorrogou o auxílio emergencial. Porém, se Bolsonaro sonha com uma recuperação da economia para chegar com chances em 2022, as coisas não são tão simples: a previsão de crescimento para o próximo ano é de apenas 2% e, sem recuperação do setor de serviços, não haverá retomada dos empregos.