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CPI vira desafio à comorbidade crônica do governo

Palavra muito em moda e cantada em verso e prosa na nova velha política brasileira, o recorte do país de nossos dias está de mudança para outro patamar. Simpáticos ou não a essa ou aquela legenda que o compõe, a verdade é que o Senado deixou o governo com as calças na cabeça e o mandatário atarantado, sendo obrigado a recorrer às redes sociais para convocar às pressas seu adormecido “exército”. Seja qual for o resultado da CPI da Covid-19, o estrago está feito. O Brasil, o mundo e os desconfiados eleitores terão acesso às ações (?) e omissões do presidente da República no combate à pandemia. Também descobrirão as razões da negação da doença (a principal comorbidade do governo), da avalanche de fake news contra a ciência e das vãs e absurdas tentativas de matar o vírus com a unha ou de forma mais radical, com tubaínas importadas de farmácias de periferia.

Contra fatos não há argumentos. Por isso, venceram a lógica e a sensatez. Apesar de todas as intimidações e tentativas teratológicas, incluindo a liminar de um juiz federal de primeira instância para impedir que Renan Calheiros (MDB-AL) virasse relator, o Senado vai investigar os (des) acertos do governo na pandemia, entre elas a propaganda do tratamento sem eficácia comprovada contra o vírus, a aposta em um militar sem conhecimento técnico no Ministério da Saúde, o atraso na compra de imunizantes, a falta de kit intubação para UTIs e hospitais públicos e a omissão na crise de oxigênio em Manaus. O reiterado negacionismo, o pouco caso com a doença, os estímulos às aglomerações e o desestímulo ao uso da máscara facial também serão investigados.

Enquanto pouca coisa se produzia de concreto e científico, atingimos números alarmantes, os quais, ainda que se queira, não serão usados politicamente como combustível para a CPI. Fanatizado ou demonizado pelo mito, nenhum dos 81 senadores terá coragem de usar 14,4 milhões de infectados e quase 400 mil mortos da Covid-19 em discursos para se isentar de eventuais omissões ou se apresentar como referência no combate à gripezinha. Com ajuda da imprensa amaldiçoada pelo chefe do Executivo, o povo terá farto conhecimento sobre quem pouco ou nada fez. Os que fizeram ou tentaram fazer algo em benefício da coletividade serão reconhecidos pelo tempo como cumpridores de obrigação. Enfim, o governo deixará de ser um monólogo. Parece o começo do fim do bordão inventado pelo general Eduardo Pazuello para jurar subserviência ao principal ocupante do Palácio do Planalto.

Dirigido ao mito, a musicalidade do mantra “É simples assim: um manda e outro obedece” acabou virando um ensurdecedor bate-estacas nos ouvidos do então ministro da Saúde, desautorizado publicamente e obrigado a suspender a intenção de compra da vacina chinesa CoronaVac. Depois de Luiz Henrique Mandetta, que deixou o ministério porque sabia o mundo do que o presidente conhecia – e conhece – de menos, Pazuello terá de dar à comissão parlamentar respostas claras a respeito do negacionismo que ajudou a sustentar e se prontificou a divulgar. O ex-ministro Nelson Teich, que não completou um mês à frente da pasta, e o atual titular, Marcelo Queiroga, também serão ouvidos nessa batalha para colocar os pingos nos is. É a lei do retorno.

Prometendo não politizar os debates, Renan Calheiros deixou claro em quem está mirando. “A diretriz é clara: militar nos quartéis, e médicos na saúde. Quando se inverte, a morte é certa”. Miras à parte, o que se espera é o Brasil verdadeiramente com um novo recorte. Acabou o tempo de plantas e postes. É chegado o momento do paredão sem torcida ou fã-clube. Quem não deve não teme. Em hipótese mais isenta, o que temer se nada devo. Diz o velho ditado que só se estabelece quem tem competência. Da mesma forma, quem não tem medo de CPIs não precisa recorrer a porões para evitá-la. Virou modismo criticar o governo federal, mas temos de reconhecer que hoje estamos muito melhores do que na semana que vem.

Antes mesmo de ser instalada, a CPI da Covid-19 produziu improváveis efeitos positivos. Por exemplo, conseguiu estancar temporariamente os instintos belicosos do presidente. Com algumas canetadas de ministros e assessores palacianos, o Executivo gerou – e vazou – a lista mais completa das próprias omissões presidenciais. São 23 itens. De tão alentados, os dados obrigaram a oposição a desistir de pensar em piada para isso. Quem sabe não estamos de novo próximos de um novo Brasil, aquele em que a gente espirrava e o vizinho dizia: saúde. Hoje, a resposta é singular: corram.

*Mathuzalém Junior é jornalista profissional desde 1978

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