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Inspiração vale ouro

Crime e castigo do tio Anacleto (ou a infidelidade na era pré-celular)

Publicado

Autor/Imagem:
J.Emiliano Cruz - Foto Francisco Filipino

Alguém pode negar que o celular – junto com os seus inúmeros aplicativos – foi um grande salto para a humanidade e um larguíssimo passo para o bem-estar dos indivíduos? Lógico que não!

Difícil listar todos os benefícios do mágico aparelho sem esquecer algum, sendo que, atualmente, é impossível imaginar a nossa vida sem ele.

Entretanto, como insistem em dizer alguns saudosistas da era do rádio, da televisão e do telefone fixo, o celular, associado principalmente ao WhatsApp, abduziu inteiramente a secreta alegria do indivíduo em fazer algumas coisas de improviso sem ter que prestar contas à família ou aos mais próximos.

Não obstante, também não podíamos avisar ou prevenir ninguém sobre alguma mudança de percurso ou eventuais atrasos.

Antigamente não ficávamos sempre comunicáveis ou “encontráveis”. Isso era bom ? Era ruim? Talvez sim, talvez não, a depender dos sentimentos de cada um de nós sobre a vida em si.

Entender uma história ocorrida no inicio da década dos anos 90, quando o celular ainda não existia, torna-se uma tarefa difícil para os mais jovens.

Mas Jaílson, que acabara de se formar em jornalismo, queria muito ouvir a narrativa da desventura, ocorrida há muitos anos, que mudou para sempre a vida do seu amargurado tio Anacleto. Ele sempre ouvira à boca pequena nos almoços de família, as tias fofoqueiras fazendo referência a como Anacleto desgraçara a própria vida.

Oficialmente, ninguém contava nada, muito menos o desgraçado abria o bico. Mas Jaílson tanto insistiu que, em um dia de fraqueza e melancolia, Anacleto cedeu e chamou o sobrinho para tomar uma cerveja no bar do Josias. E, finalmente, matou a curiosidade do rapaz.

-O primeiro ato do drama aconteceu em um maldito dia trinta de agosto, mês de cães danados, começou Anacleto.

– De que ano, tio? perguntou Jailson, ansioso para situar o causo em uma faixa temporal.

– Mil novecentos e noventa e dois, lembro como se fosse hoje!

– Nossa, isso tem vinte e oito anos, admirou-se Jailson, que ainda nem tinha essa idade.

– Pois é, sobrinho! Eu achava que era muito malandro, mas não passava de um idiota. Eu e meus colegas estávamos em um congresso nacional dos bancários em Belo Horizonte, tinha gente de todo o país…

– Em Belo Horizonte? E o senhor já morava aqui em Porto Alegre ou ainda estava em Pelotas?

– Já morava em Porto Alegre, estava casado com a Margarete e o seu primo Geraldinho tinha quatro anos. Maldita hora em que decidi participar daquele congresso…que me perdoem os velhos companheiros daquela época.

– E então, o que aconteceu em Belo Horizonte?

– No inicio foi tudo alegria, os debates, o fervilhar de várias culturas regionais, a camaradagem e…as mulheres, acrescentou Anacleto com um sorriso melancólico.

– Imagino, disse Jailson, sorrindo maliciosamente.

– Por absoluta maldade do destino, sentei ao lado da Maria Alice no plenário dos debates gerais. Ela era uma típica e cativante mineira, sorriso luminoso, charme envolvente, jeitinho brejeiro. Nos entendemos às mil maravilhas, aí imaginei um jeito de ficar sozinho com ela sem parecer desrespeitoso.

– E como foi isso?

– Bem, disse a ela que precisava comprar um presente para o meu afilhado de quatro anos de idade e, após o primeiro dia do congresso, pedi para ela me ajudar nessa tarefa inocente. Na verdade, eu ia matar dois coelhos com uma cajadada só e levar um presente para o Geraldinho.

– E a estratégia deu certo?

– Sim, deu certo até demais! Fomos juntos ao shopping, compramos um belo autorama, emendamos com um chopinho, muita conversa e finalmente acabamos passando a noite juntos no hotel onde estavam alojadas as delegações do evento.

– Entendi, sucesso total! Mas e depois? Perguntou o excitado rapaz.

– Ficamos juntos durante os dois dias do congresso e, ao final, nos despedimos sem muita cerimônia. Lembre-se sobrinho, não existia celular para o “me passe seu contato’ e uma linha fixa de telefone era um luxo, portanto, fácil de dizer que eu não tinha.

Nos despedimos com dois beijinhos e pensei que a coisa tinha acabado ali.

– Então o senhor voltou para Porto Alegre, tranquilo e sem nem pensar mais no assunto? Hoje, a mineirinha descobriria tudo sobre o senhor e seu paradeiro com um clic de internet…

– Sim, mas calma que não foi bem assim. Aconteceu o impensável, o surreal!

– O que, o que??!!

– Eu, Margarete e o Geraldinho morávamos em um condomínio de bancários no bairro Partenon. Até hoje, não sei como deixei escapar essa informação para Maria Alice. Vacilei feio!

– Não aconteceu o que estou imaginando, aconteceu?

– Aconteceu sim, sobrinho! No feriado de sete de setembro, Maria Alice apareceu no condomínio, descobriu com algum vizinho o número do meu apartamento e subiu de mala e tudo.

– Nossa! E aí…???, quis saber Jailson, de olhos arregalados.

– Aí ela tocou a campainha e eu abri a porta sem espiar no olho mágico!

Fiquei paralisado e mudo como uma estátua quando a vi. Ela me abraçou, me beijou e disse que queria me rever e, como eu não tinha telefone, não pode me avisar que estava vindo a Porto Alegre. Achou que seria romântico me fazer uma surpresa.

– Eita! E a tia Margarete?

– Margarete foi ver quem era e as duas se olharam fixamente por infinitos segundos, sem nenhuma delas entender nada a princípio!

– Sim, sim…e então??? perguntou Jailson, empolgado.

– As duas me perguntaram ao mesmíssimo tempo: “Quem é ela???”

Olhei alternadamente para ambas, tentando ganhar tempo, pensei até em fingir um mal súbito, mas absurdamente, exclamei – Não tenho a menor ideia!

– Xeque-mate! Exclamou o sobrinho.

– Sim, xeque-mate aplicado sem piedade nesse enxadrista amador! A partir desse momento, parece que tudo aconteceu como em “crônica de uma morte anunciada”: gritos e xingamentos, Maria Alice indo embora enfurecida porque eu não contara que era casado e pai de um filho, Margarete me colocando para fora do apartamento, eu me hospedando em um hotel, a audiência de separação…

– Que babado, tio! E como a situação progrediu?

– Para Maria Alice, não sei, nunca mais falei com ela. Margarete, depois de um mês, mudou-se com nosso filho para o Rio de Janeiro e logo casou-se com um banqueiro.

– E para o senhor?

– Bem, eu tive que entregar quase todos meus bens para Margarete, então mudei para uma quitinete. Casei e me separei mais duas vezes e agora vivo sozinho, olhando a chuva bater nos vidros da janela, enquanto rumino essa história, fumo e tomo um café sem açúcar e sem afeto.

– Lamento muito pelo senhor, tio Anacleto! Mas agradeço por ter me contado sua história… acho que já encontrei inspiração para a minha próxima crônica no Café Literário!

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