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Doce velhote safadinho

Crônicas pandêmicas com variações sobre a língua dos anjos

Publicado

Autor/Imagem:
Gilberto Motta - Texto e imagem

Era inverno.

A menina e o avô deixaram a casa após meses de isolamento.

A praça enorme e vazia, a maior da cidade.

A grama toda queimada de geada e as árvores quase carecas pela perda das folhas.

O vento cantava forte e na rua algumas pessoas distanciadas, de máscaras.

A cidade e o planeta ainda respiravam tristeza e impossibilidades de abraços, de proximidades.

Bea e o avô estavam imunizados.

Pararam próximos a uns velhos carvalhos.

– Está notando alguma coisa estranha, querida? –perguntou o avô.

– Não sei, vô –respondeu insegura-, essas árvores estão todas sequinhas, mas ainda tem algumas folhas…

– Certíssimo, garotinha! Os carvalhos nunca deixam cair todas as folhas durante o inverno. E sabe por quê? – A menina pensou, pensou e abanou a cabeça dizendo que não.

– Ouça – disse-lhe o avô. Naquele instante, uma rajada de vento sacudiu os ramos e dos ramos saiu um barulhinho seco e leve. Parecia muito com o barulhinho do rabo da cobra cascavel que a menina vira na TV.

– Ouviu? Esta é a voz dos velhos carvalhos no inverno. Se não fossem as folhas secas, poderia ser facilmente confundido com a voz da goiabeira ou com a do eucalipto. As coisas falam, Bea. Cada árvore tem a sua própria voz. Só é preciso aprender a ouvi-la.

A tarde chegou e uma nevoa intensa cobriu a praça.

No caminho de volta, a menina congelou. Apenas a mão que segurava firme a do avô ainda estava quente. E o narizinho sob a necessária máscara, Bea quase nem sentia.

De vez em quando um saco plástico de supermercados rodopiava no ar como pipas enlouquecidas.

– Vovô –disse Beatriz-, os sacos de plásticos também falam?

– Sim, os saquinhos, as latas, todo lixo que a gente produz…

– E as pedras?

– As pedras, os rios, os mares, as flores…

– E os carros?

– Víxi! Os carros falam demais e muito alto. Para não falar dos ônibus, dos caminhões e dos tratores e aviões.

– E as roupas no varal?

– Sem dúvida alguma, meu amorzinho, sem dúvida… elas também falam.

Se você prestar bem atenção nos lençóis balançando ao vento, na graminha verdinha que cobre o quintal, ah! poderá descobrir uma linguagem bem especial…um poema inteiro… uma história.

De mãos dadas, seguiram caminhando em silêncio, enquanto a névoa pintava de cinza a tarde por detrás dos velhos prédios da cidade e da solidão das pessoas.

No final da tarde, assim que chegaram em casa, a menina montou de cavalinho nas costas do ainda bem conservado avô e sussurrou baixinho em seu ouvido.

– Avô, você é mesmo um velhote safadinho, né, vô?… sabe tudo!

O avô acariciou-lhe a cabeça com a mão direita e, com a esquerda, enxugou disfarçadamente uma pequena lágrima que desceu por seu rosto.

– Talvez, meu anjinho…talvez…

E assim lá se foi junho.

No mês seguinte, vovô sentiu-se mal. A imunidade ao vírus fora uma ilusão.

Não pudemos nem dar adeus ao Vô, mas sei que lá do jeito dele, todas as coisas cantavam uma valsa de despedida e de boa viagem para a nova casa dele, no céu.

Chegamos a novembro.

Ainda não tirei a máscara, mas nesta tarde de sol a nossa praça parece mais linda e os velhos carvalhos já estão vivos novamente, cheios de folhas verdinhas e repletos de passarinhos.

Há música por toda parte.

Nestes meses sozinha em meio a pandemia, sigo aprendendo sempre que os “barulhos” são palavras, sons, sinfonias.

Sinto a presença doce do Vô em cada palavra que as coisas, os objetos me lançam…”Talvez, meu anjinho…talvez…”.

Benção, Vô, meu velhote safadinho!
(Beatriz)
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A crônica DOCE VELHOTE SAFADINHO faz parte do livro ainda inédito VARIAÇÕES SOBRE A LÍNGUA DOS ANJOS, com narrativas da menina fictícia Beatriz.

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