Era inverno.
A menina e o avô deixaram a casa após meses de isolamento.
A praça enorme e vazia, a maior da cidade.
A grama toda queimada de geada e as árvores quase carecas pela perda das folhas.
O vento cantava forte e na rua algumas pessoas distanciadas, de máscaras.
A cidade e o planeta ainda respiravam tristeza e impossibilidades de abraços, de proximidades.
Bea e o avô estavam imunizados.
Pararam próximos a uns velhos carvalhos.
– Está notando alguma coisa estranha, querida? –perguntou o avô.
– Não sei, vô –respondeu insegura-, essas árvores estão todas sequinhas, mas ainda tem algumas folhas…
– Certíssimo, garotinha! Os carvalhos nunca deixam cair todas as folhas durante o inverno. E sabe por quê? – A menina pensou, pensou e abanou a cabeça dizendo que não.
– Ouça – disse-lhe o avô. Naquele instante, uma rajada de vento sacudiu os ramos e dos ramos saiu um barulhinho seco e leve. Parecia muito com o barulhinho do rabo da cobra cascavel que a menina vira na TV.
– Ouviu? Esta é a voz dos velhos carvalhos no inverno. Se não fossem as folhas secas, poderia ser facilmente confundido com a voz da goiabeira ou com a do eucalipto. As coisas falam, Bea. Cada árvore tem a sua própria voz. Só é preciso aprender a ouvi-la.
A tarde chegou e uma nevoa intensa cobriu a praça.
No caminho de volta, a menina congelou. Apenas a mão que segurava firme a do avô ainda estava quente. E o narizinho sob a necessária máscara, Bea quase nem sentia.
De vez em quando um saco plástico de supermercados rodopiava no ar como pipas enlouquecidas.
– Vovô –disse Beatriz-, os sacos de plásticos também falam?
– Sim, os saquinhos, as latas, todo lixo que a gente produz…
– E as pedras?
– As pedras, os rios, os mares, as flores…
– E os carros?
– Víxi! Os carros falam demais e muito alto. Para não falar dos ônibus, dos caminhões e dos tratores e aviões.
– E as roupas no varal?
– Sem dúvida alguma, meu amorzinho, sem dúvida… elas também falam.
Se você prestar bem atenção nos lençóis balançando ao vento, na graminha verdinha que cobre o quintal, ah! poderá descobrir uma linguagem bem especial…um poema inteiro… uma história.
De mãos dadas, seguiram caminhando em silêncio, enquanto a névoa pintava de cinza a tarde por detrás dos velhos prédios da cidade e da solidão das pessoas.
No final da tarde, assim que chegaram em casa, a menina montou de cavalinho nas costas do ainda bem conservado avô e sussurrou baixinho em seu ouvido.
– Avô, você é mesmo um velhote safadinho, né, vô?… sabe tudo!
O avô acariciou-lhe a cabeça com a mão direita e, com a esquerda, enxugou disfarçadamente uma pequena lágrima que desceu por seu rosto.
– Talvez, meu anjinho…talvez…
E assim lá se foi junho.
No mês seguinte, vovô sentiu-se mal. A imunidade ao vírus fora uma ilusão.
Não pudemos nem dar adeus ao Vô, mas sei que lá do jeito dele, todas as coisas cantavam uma valsa de despedida e de boa viagem para a nova casa dele, no céu.
Chegamos a novembro.
Ainda não tirei a máscara, mas nesta tarde de sol a nossa praça parece mais linda e os velhos carvalhos já estão vivos novamente, cheios de folhas verdinhas e repletos de passarinhos.
Há música por toda parte.
Nestes meses sozinha em meio a pandemia, sigo aprendendo sempre que os “barulhos” são palavras, sons, sinfonias.
Sinto a presença doce do Vô em cada palavra que as coisas, os objetos me lançam…”Talvez, meu anjinho…talvez…”.
Benção, Vô, meu velhote safadinho!
(Beatriz)
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A crônica DOCE VELHOTE SAFADINHO faz parte do livro ainda inédito VARIAÇÕES SOBRE A LÍNGUA DOS ANJOS, com narrativas da menina fictícia Beatriz.