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Rancor

Cuidado com o rancor; ele é uma bola de gude que pode virar um balão

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Ele lanhava com delicadeza, uivava baixinho e quase não se ouvia seu rosnado. Mas tudo ficava mais intenso a cada dia.

Era um pequeno rancor, expelido do peito de alguém como um catarro. Caiu em um bueiro, chegou ao esgoto – terreno fértil para rancores – e começou a crescer. De início, bem devagar. Alimentava-se de restos de tristeza, pedaços de ressentimento, que chegaram ali não se sabe como.

Certo dia, porém, roçou em um rato, e o contato com um ser vivo o transfigurou. Em poucas horas dobrou de tamanho, de força, de malignidade.

Descobriu que podia abandonar temporariamente a forma esférica e estender-se em todas as direções, em busca de proteína. Ratos e baratas não faltavam por ali, o alimento abundante o fez crescer mais rápido.

Vislumbrou a luz, na entrada da sarjeta, e seguiu em sua direção. Saiu para a superfície sem dificuldade, seus tentáculos esgueirando-se entre as grades, mas logo retomou a forma esférica.

A bolinha de rancor rolava pelas ruas, maravilhada com o número de presas, de seres vivos contra quem investir. Ratos e baratas, para começar, quase tão numerosos ao ar livre quanto no subsolo. Mas também cães, gatos e humanos. Bastava encostar na vítima e lanhá-la com suas garras, para absorver parte de sua força vital. Uma pessoa mal notava a esfera avermelhada em que esbarrara; depois, havia um incômodo no local atingido – e um sentimento maligno que a invadia. Cães e gatos, porém, rosnavam raivosos, mostravam os dentes e por vezes atacavam quem se aproximasse.

Quando estava do tamanho de uma bola de tênis, o rancor tocou em uma pessoa. Ela deu um grito, mais de susto e surpresa do que de dor, e chutou aquela coisa gosmenta para longe. Nesse dia, ele conheceu a dor e o medo: as presas podiam revidar, e machucá-lo!

Enquanto se recuperava, percebeu que havia duas alternativas para sobreviver. Podia absorver o máximo de força vital/proteína, crescer tanto quanto pudesse e se mostrar um adversário à altura daqueles seres perigosos, em um combate de vida ou morte. Era tentador, mas perigoso, e rancores não vêm associados a emoções como a coragem.

A segunda alternativa consistia em limitar deliberadamente sua expansão, restringindo sua absorção de nutrientes. O crescimento contínuo era inevitável mas, assim, poderia passar quase despercebido por mais tempo.

Foi a saída que a esfera de rancor escolheu.

Assim, se vocês virem, rolando pelo chão, algo redondo e gosmento, pouco menor que uma bola de futebol, resistam à tentação de chutá-lo. Pode ser mais perigoso do que imaginam. E, acima de tudo, não alimentem rancores.

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